-Ricardo Antonio Lucas Camargo-
Quando se vai tratar do tema das funções econômicas do Estado, definidas pelo Texto Constitucional – e cumpre recordar que, mesmo quando se pense na hipótese de um fundamentalismo de mercado, o Estado ainda irá desempenhar, sob o aspecto jurídico-formal, no mínimo, a função de agente normatizador, nem que seja para declarar a interdição de atuar neste campo, abstração feita, claro, de considerações sobre a validade de tais declarações em determinadas hipóteses concretas -, uma das questões mais relevantes será, sem sombra de dúvidas, a relacionada à “reserva de mercado aos nacionais”.
Pela expressão “reserva de mercado” costuma-se designar a acessibilidade a atividades ou profissões a determinados segmentos da sociedade, com exclusão de outros, no caso, olhos postos nos nacionais.
Muitas vezes se faz um discurso voltado a manifestar a desejabilidade da reserva, por tal ou qual motivo, embora nem sempre este discurso corresponda à realidade: a reserva de mercado, para sair do plano da mera desejabilidade de tais ou quais grupos, somente se pode verificar a partir do momento em que exista uma determinação, com força vinculante, que defina os requisitos para a acessibilidade a esse mesmo mercado, ou uma proibição a que quem não preencha tais requisitos.
No Brasil, a Lei 13.874, de 2019, conhecida como “Lei da Liberdade Econômica”, interditou ao Poder Público dos três níveis – federal, estadual e municipal – o estabelecimento de “reserva de mercado”, embora, no plano federal, esta proibição se mostre inócua, caso entenda por bem o Poder Central, que editou esta lei, instituir a providência em tais ou quais circunstâncias.
Para compreender como se estabelece a “reserva” – qualificação -, será necessário recordar como se constitui o ente qualificado, isto é, o “mercado”, justamente porque a qualificação não tem existência autônoma em face do ente que a recebe.
Cumpre sempre recordar que, no plano dos fatos, não existe o mercado como um ente natural: ele depende, para se configurar, da possibilidade de produção de excedentes, por um lado, e, por outro, da possibilidade de se dispor sobre esses mesmos excedentes.
Se a produção de excedentes, em si mesma, pode se configurar como um fato “bruto”, o mesmo não se pode dizer a respeito da respectiva disponibilidade, que depende, sim, do que disser o ordenamento jurídico.
Com efeito, não existe troca sem transferência de propriedade, e o que distingue a posição de quem apreende fisicamente qualquer objeto como propriedade, posse ou detenção não é o fato físico, em sua crueza, da apreensão, mas sim o título que tenha sido definido juridicamente para tanto.
Logo, o discurso do direito positivo, definindo o título mercê do qual alguém seria investido nos poderes de disposição sobre os excedentes que se produz, tornando possível a transferência da respectiva propriedade, será, de modo inexorável, constitutivo de todo e qualquer “mercado”.
Quer dizer, a existência de um “mercado” não é um fato “bruto”, mas sim um fato institucional, é um fato que, para ocorrer, necessita da mediação de um discurso constitutivo, no caso, o discurso do direito positivo qualificando a posição de quem produz os excedentes e de quem almeja obtê-los.
De outra parte, as qualidades inerentes a esse mercado, com maior ou menor acessibilidade, serão determinadas por decisões de quem tenha a possibilidade de definir os termos das relações que nele se travam, ou seja, por decisões de quem tenha a si atribuído o que se conhece na literatura especializada como “poder econômico”, que, como bem observam Washington Peluso Albino de Souza e Gilberto Bercovici, pode ser titularizado tanto pelo particular quanto pelo Poder Público, uma obviedade aparente que, no entanto, tem de ser mencionada, tendo em vista que também ela tem sido alvo, nos últimos tempos, de negacionismos.
A “reserva de mercado” é uma qualidade deste que se traduz como restrição à respectiva acessibilidade, que pode decorrer tanto de ato negocial, entabulado entre agentes privados, quanto de ato do Poder Público.
De qualquer modo, sempre decorrerá de um ato jurídico o estabelecimento de uma situação desta natureza, e é claro que, quando decorra de ato negocial, poderá configurar, em tese, uma forma de dominação de mercado aliada à eliminação das possibilidades de concorrência, traduzindo abuso do poder econômico – tal, aliás, o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça no recurso especial 3.836, relatado pelo Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira -, até porque, como salientava já Adam Smith, o móvel do agente econômico privado, até mesmo para que possa sobreviver em um ambiente muito semelhante a um campo de batalha, é o seu benefício pessoal, sua afirmação egoística sobre o restante do mundo.
Quando decorra, contudo, de ato do Poder Público, a presunção – de caráter relativo, admitindo, pois, prova em sentido contrário - é de que exista um interesse coletivo na limitação da acessibilidade a determinada profissão ou atividade por parte de tais ou quais sujeitos, e o desequilíbrio entre nacionais e não nacionais, embora, nesses casos, tenha de ser realizada uma verificação concernente à existência de agressão à isonomia.
O ato, por isto, deverá ser de caráter genérico, impessoal, com o que, mesmo que legítima, mesmo que exista uma causa material que a possa justificar, a instauração da reserva de mercado não poderá ser realizada mediante a prática de ato concreto individualizado.
O estabelecimento de reserva de mercado, em se tratando dos nacionais entre si, ainda que veiculado por lei e tomada em consideração a disparidade entre as regiões, tem sido considerado agressivo à isonomia pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, seja em face da Constituição anterior (e.g., Representação 1.201, relatada pelo Min. Moreira Alves), seja em face da Constituição atual (e.g., Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.070, relatada pelo Min. Eros Grau); em se tratando das relações entre nacionais e não nacionais, mesmo depois de escoimado da Constituição brasileira de 1988 o artigo 171, que daria ensejo ao tratamento preferencial à empresa brasileira de capital nacional, pela Emenda Constitucional n. 6, de 1995, a existência de efetiva assimetria merecedora de compensação seria o tratamento desigual aos desiguais, na medida da respectiva desigualdade, como se verificou no julgamento do regime da televisão por assinatura (Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.923, relatada pelo Min. Luiz Fux).
É a partir do exercício da função de normação, pois, que se vai compreender o que significará, em termos econômicos, a condição de nacional ou não nacional, e é de se recordar que a nacionalidade, como bem assinalou a Professora Cecilia Corsi em estudo dedicado ao Professor Luigi Lombardi Vallauri, será o traço de imputação das prerrogativas e desconfortos que serão imputados ao indivíduo que tornarão possível a sua existência em uma determinada sociedade.
Isto não quer dizer, evidentemente, que seja a condição de nacional que faça com que um indivíduo possa ou não ser considerado titular de direitos fundamentais, tenham eles ou não conteúdo econômico, até porque, como pela Professora Sofia Ciuffoletti, sobre o problema da deslocalização, tal premissa conduziria a que muitos somente assumissem a condição de sujeitos de direitos no momento em que se submetessem à justiça penal: a condição de nacional será relevante em relação a alguns dentre os direitos fundamentais, não a todos, e o critério para identificar a relevância ou irrelevância da distinção com base na nacionalidade estará posto no próprio direito positivo.
Haverá circunstâncias em que a distinção em razão da nacionalidade poderá caracterizar-se como necessária, para a composição de um desequilíbrio real em face do estrangeiro, e haverá circunstâncias em que ela se manifestará como uma inequívoca discriminação não justificada em face da isonomia.
Se uma exigência de um percentual mínimo de nacionais dentre os trabalhadores pode ser considerada um dique a que se sentissem os empregadores estimulados a contratar mão de obra estrangeira com mais qualificação, porém por salários menores, como ocorreu por vezes no Brasil anterior a 1930, de tal sorte que não se poderia, aqui, falar em agressão à isonomia, a tutela dos trabalhadores em relação às prerrogativas patronais não se dá em razão da respectiva nacionalidade, como salientou a Professora Cecilia Corsi em texto referente ao acesso dos migrantes aos serviços sociais, mas sim em razão de sua condição de pessoa.
A relevância do tema se põe, em especial, num momento em que, ao mesmo tempo em que se ouvem as vozes de classes médias, em países periféricos em especial, clamando pelo ingresso mais intenso de investimentos provenientes do estrangeiro, por um lado, dessas mesmas classes médias vem a atoarda em torno de uma rejeição ao ingresso de pessoas físicas estrangeiras, às quais costumam atribuir a introdução de vícios, de ideias desagregadoras, de tendências à prática de crimes, além de alegarem que não poderia o Estado dar-se ao luxo de acolher estrangeiros se não tivesse condições de atender adequadamente os seus nacionais.
No âmbito constitucional, é comum estabelecer-se quais serão as funções e atividades reservadas a nacionais, por vezes, arredando-se ou restringindo-se a própria acessibilidade de naturalizados, como se pode exemplificar, no caso da Constituição brasileira de 1988, artigo 222, a exigência de que o controlador de empresa de comunicação social seja brasileiro nato ou naturalizado há mais de dez anos, sendo de notar que, desde 1934 até 2002, foi nos documentos constitucionais brasileiros interditada a própria presença de capitais estrangeiros neste setor.
Vale notar, também, a tradicional reserva, no campo da mineração, artigo 176, § 1º, do Texto Constitucional vigente no Brasil, a brasileiros ou a empresas constituídas segundo as leis brasileiras, com sede e administração no país, recordando, mais, a diferença do regime de apropriação entre o solo e o subsolo.
Há, também, a abertura para o legislador admitir a acessibilidade do estrangeiro a cargo público que não seja privativo de brasileiro, posta no inciso I do artigo 37 da mesma Constituição, com a redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional n. 19, de 1998.
Nem se diga que, no caso anterior, não se está a falar em mercado, porquanto é inequívoco que o caráter competitivo do recrutamento de servidores públicos não deixa de traduzir, ao lado da necessidade de proteção da gestão do patrimônio público – cuja constituição se dá, como todos sabemos, majoritariamente mediante recursos obtidos à força aos que se submetem à autoridade estatal e, por isto mesmo, não poderia, de acordo tanto com Adam Smith n’ A riqueza das nações quanto com Ludwig von Mises n’ Ação humana, ser gerido pelos mesmos critérios que o patrimônio particular –, tradicionalmente uma das opções mais frequentes de trabalho para a população em geral.
A aquisição ou arrendamento de propriedade rural por pessoa estrangeira, seja física ou jurídica, segundo a Constituição brasileira, artigo 190, deve ser disciplinada e limitada por lei, seguindo uma tradição voltada a evitar que, num país de dimensões continentais, viessem a formar-se núcleos que pudessem render ensejo à facilitação de veleidades desintegradoras do território nacional.
Cabe, aqui, falar em reserva de mercado, recordando uma das grandes transformações, segundo Karl Polanyi, levadas a cabo pela ascensão do capitalismo, que foi justamente a introdução da propriedade imobiliária na categoria dos bens passíveis de ingressar no mercado, diversamente do que ocorria no feudalismo, quando era vista como fonte de prestígio e título de investidura de quem tivesse sobre ela o domínio em poderes de coação.
Por outra banda, deve-se advertir que nem todo o solo rural brasileiro é considerado passível de ingresso no denominado “mercado imobiliário”, uma vez que a este são subtraídas as terras destinadas a constituírem habitat das populações indígenas – Constituição brasileira, artigos 20, XI, e 231, e artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias -, as terras destinadas a abrigarem os remanescentes de quilombos – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, artigo 68 –, as terras devolutas destinadas à proteção dos ecossistemas – Constituição brasileira, artigo 225, § 5º - e as unidades de conservação de proteção integral definidas na Lei 9985, de 2000, artigo 7º, I, e § 1º, e artigos 8º, 9º, 10, 11, 12 e 13.
Claro que a enumeração destes temas está bem longe de possibilitar o exaurimento do exame dos setores que, no caso brasileiro, são, ou não, objeto de “reserva de mercado” e, quando o são, se a têm ou não justificada, mas, tão-somente, o de permitir o início do debate acerca do próprio exercício, por parte do Estado, da função de normatizar a economia.
Ricardo Antonio Lucas Camargo - Professor nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professor Visitante da Università degli Studi di Firenze – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP.
Obrigada, professor Ricardo, pelo ótimo artigo contendo profundos questionamentos sobre a aplicação do conceito de reserva de mercado ao instituto da propriedade. Obriga-nos a refletir bastante!!