-Bernardo Lins-
Apaixonados por viagens têm motivações e interesses os mais diversos. “Los hay de todos los sabores”, diria Victor Calderón, um velho amigo mexicano que há muito perdi de vista. Alguns gostam de compras, outros de restaurantes e festas, outros, ainda, de viver a cultura e o espírito dos moradores locais. Às vezes, esse espírito tem que ser procurado em lugares do passado, preservados ou não. A pátina do tempo, aquela que esconde as imagens nas paredes de uma igreja ou os afrescos no teto de um palácio, em outras ocasiões lhes dá um sombreamento que valoriza o drama.
Em Lisboa, a cidade deliciosa que nós, brasileiros, tanto apreciamos como um segundo lar, uma tragédia que ocorreu há cinco séculos mostra o outro lado da moeda de um povo destemido e sagaz. Para experimentar em primeira mão um sabor desse episódio, o visitante curioso pode procurar a Igreja de São Domingos, no Rossio, bem no centro histórico. Trata-se de uma edificação de desenho barroco, situada diante de um largo, a um lado da Praça D. Pedro IV.
A igreja tem um histórico de vicissitudes. Iniciada em 1241 como uma edificação simples, foi ampliada como uma construção gótica ao final daquele século e assim se manteve até 1531, quando um terremoto a danificou. Foi derrubada e reconstruída cinco anos depois, com grande riqueza. No entanto, voltaria a ruir com o terremoto de 1755, sendo novamente reconstruída e redecorada no estilo barroco tardio que vemos até hoje. Nela se realizaram as principais cerimônias da monarquia portuguesa a partir de então.
Em 1959, foi novamente devastada por um incêndio que destruiu a decoração interior e fez ruir sua abóbada. Para impedir a demolição do prédio, a população da freguesia manteve uma vigília, com missas sendo continuamente rezadas no largo em que a igreja se localiza, de modo a impedir o acesso das equipes. A construção acabou por ser reformada anos mais tarde, preservando a fachada e a estrutura do século XVIII, sendo reaberta em 1994.
O episódio que nos interessa ocorreu em 1506, poucos anos após a descoberta do Brasil. Portugal já era um país unificado, talvez o primeiro estado-nação da Europa no sentido moderno do termo. Tinha território definido, idioma nacional e uma estratégia de Estado desde o século XIV. A dinastia de Avis, iniciada com a subida ao trono de D. João I, em 1385, seguiu uma política de aceitar a diversidade e acolher refugiados que imigravam ao país. Desse modo, entre outras comunidades, havia uma presença expressiva de judeus.
Quando D. Manuel I, rei de Portugal de 1495 a 1521, negociou seu casamento com D. Isabel de Castela em 1497, teve que atender à exigência de expulsar do país os judeus não convertidos ao cristianismo. Para fazer cumprir o prometido ao seu jeito, impôs uma ampla campanha de batismos à força dos judeus residentes, que viriam a ser, assim, chamados de cristãos-novos. O casamento durou apenas um ano, pois a rainha morreu ao dar à luz o filho do casal. Viúvo, D. Manuel se casaria novamente, em 1500, com Maria, irmã de Isabel.
Nesse período, Portugal passava por um ciclo de carestia, devido a secas prolongadas, que se estendia desde 1480. Houve pelo menos três episódios de fome, em 1484, 1490 e 1494. No dia 19 de abril de 1506, durante uma missa em que se implorava pelo fim da seca, alguns fiéis notaram a face do Cristo iluminada sobre o altar, e se exaltaram com um suposto milagre. Um cristão-novo ali presente fez notar, porém, que se tratava apenas de um raio de luz que atravessava um vitral. A multidão o fez calar e, descontrolada, o matou a pancadas. Da igreja, enfurecida e incitada pelos frades dominicanos, a turba espalhou-se pela cidade, matando outros cristãos-novos, chegando-se em dois dias a um massacre que teria vitimado entre duas e quatro mil pessoas. A violência cessou quando D. Manuel, que estava fora de Lisboa, a ocupou e reprimiu o incidente. Para se ter uma ideia da proporção da tragédia, estima-se a cidade tivesse à época cerca de 70 mil habitantes.
Hoje há um marco em frente à igreja registrando o terrível episódio. A restauração de trinta anos atrás deixou à vista os efeitos do último incêndio, dando ao interior do templo um aspecto impressionante. As colunas de pedra ainda marcadas pela fuligem, as esculturas e relevos desfigurados pelo calor, peças quebradas e não repostas, a abóbada reconstruída, sem enfeites, pintada de uma cor salmão, parecem ilustrar uma edificação marcada pelos seus pecados.
O trágico massacre exemplifica uma situação recorrente. Uma população tensionada pelas dificuldades deixa emergir forças que levam a um comportamento não racional, mas marcado por emoções profundas, às vezes de extrema violência. O coletivo, assim como o indivíduo, carrega várias camadas psíquicas que se sobrepõem, das quais o comportamento racional, visível, lógico, é apenas a mais exterior. Subjacente a esta, um poderoso substrato se revela. E assim se revelam, por vezes, os pecados que ficam marcados nas paredes.
Bernardo Lins é doutor em economia pela UnB e consultor legislativo aposentado da Câmara dos Deputados e associado do IBAP.
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