-RICARDO ANTONIO LUCAS CAMARGO-*
Em momentos em que os valores fundamentais da civilização estão postos em questionamento, surgem os denominados “profetas do passado”, que falam, normalmente, em uma decisão errada que não se deveria ter tomada, esquecendo-se, no entanto, que muitas dessas decisões erradas baseavam-se ou na falta de uma experiência anterior ou na subavaliação das consequências que se viam da respectiva adoção.
Em 12 de janeiro de 2016 – antes, portanto, de ter sido apeada do poder a Presidenta (a palavra não nasceu da “corrupção da língua pela esquerda”, não, minionzinhos da minha alma, ela se encontra no canônico Machado de Assis, que não tomava liberdades com o vernáculo, no seu “Memórias póstumas de Brás Cubas”, e Sérgio Milliet, tradutor de “As relações perigosas” de Chordelos de Laclos, falecido muito antes do próprio Lula chegar à Chefia do Executivo Federal, usou a palavra, que também é registrada no Dicionário de Candido de Figueiredo de 1899) Dilma Rousseff -, cheguei a confeccionar e publicar em meu mural no Facebook um quadrinho, com os seguintes dizeres:
“Crise, paranoia e insegurança na República de Weimar
Após a derrota na I Guerra, em 1919, a Alemanha, na cidade de Weimar, aprovou uma Constituição republicana, de inspiração social-democrata, que viria a influenciar o constitucionalismo ocidental, especialmente pela presença das cláusulas que mitigavam os direitos econômicos fundamentais do liberalismo. Contudo, mesmo esta solução de compromisso e a efervescência cultural do período não foram suficientes para que nele se pacificassem os interesses que se opunham entre si. O temor de que se repetisse ali o que ocorrera na Rússia, além da alta inflação e do desemprego conduziu a uma situação de insegurança e violência de que não escaparam nem mesmo políticos influentes como Erzberger e Rathenau. Em especial a classe média se sentia acuada e buscava encarnar suas esperanças em alguém que lhe restituísse a autoestima e pudesse fazer frente aos bolchevistas. A busca de um responsável sobre cujos ombros despejar as culpas – os vermelhos, os judeus, os ciganos, os negros, todos, enfim, que, de algum modo, disputavam o espaço com os outrora gloriosos germânicos - e o anseio por um herói poderoso e resoluto eram os principais componentes do imaginário da população do Reich. O expressionismo cinematográfico de Lang, Wiene e Murnau, bem como as obras de Musil e Thomas Mann exprimem bem o espírito da época.
O ato final da República de Weimar
A derrota de Ernest Thaelmann nas eleições alemãs foi sucedida pela nomeação, por parte de Hindenburg, de Adolf Hitler como chanceler. Para esconjurar o “perigo vermelho”, absolutamente qualquer preço estavam dispostos os alemães a pagar. Somente não imaginavam quão alto poderia ser tal preço” [veja aqui, acessado em 12 jan 2021].
Não tenho o dom da profecia, mas, como qualquer pessoa comum – falar em normalidade num ambiente tão parecido com a Casa Verde que pôs Itaguaí/RJ no mapa da literatura -, parecia-me não muito difícil realizar os prognósticos a partir de um contexto conhecido análogo.
Isto conduzia-me a, com uma insistência que se tornava até mesmo enfadonha, alertar para o rumo que as coisas tomavam: o cenário que eu presenciava, então, e que já tinha vários sinais acesos antes da própria cogitação do “impeachment”, de uma classe média que se sentia traída em relação à manutenção do respectivo nível de consumo e que vinha a ter as suas paranoias amplamente exploradas – “qualquer coisa é melhor que o comunismo”, “estão destruindo a família, estimulando aborto, drogas e homossexualismo”, “vão perseguir os cristãos e proteger os macumbeiros”, “querem que a nossa sagrada bandeira fique vermelha”, “Brasil é verde e amarelo, abaixo a foice e o martelo” -, de um Governo que se tinha eleito sob um discurso de esquerda, fazendo concessões profundas à direita – além da Emenda Constitucional n. 40, de 2003, que reduziu drasticamente os condicionamentos postos para as instituições financeiras, a Lei de Recuperação Judicial e Falências, de 2005, que colocou os créditos trabalhistas superiores a 150 salários mínimos atrás dos créditos bancários e dos créditos fiscais (e pôs estes para serem atendidos depois dos bancários), o novo Código Florestal, de 2012, mais permissivo à supressão de vegetação que a legislação anterior – evocavam o clima de irracionalidade que viabilizara a ascensão de um aventureiro, cabo estafeta, ao poder na frágil democracia weimariana [CAMARGO, Ricardo Antonio Lucas. Adrian Leverkühn, o anti-Parsifal – atualidade do “Doutor Fausto” de Thomas Mann quanto à sobrevivência do Estado de Direito. In: veja aqui, acessado em 6 jul 2016].
Claro que não caberia estabelecer um paralelo muito rígido, até porque o cidadão médio da Alemanha das décadas de 20/30 do século passado era muito mais culto do que o cidadão médio brasileiro destas primeiras décadas do século atual, e talvez por isto o perigo de ocorrer, em Pindorama, algo semelhante ao que então se verificara ali, no Centro da Europa, fosse muito maior: um acervo menor de informações, somado a determinadas tendências afetivas – normalmente, a identificação de um “inimigo comum” enquanto elemento de aglutinação de seres humanos heterogêneos, algo que o grande jurista do III Reich, Carl Schmitt, soube explorar como poucos em seu “Conceito de político”, e, num momento seguinte, a identificação de uma frustração e uma esperança comuns, algo que Bob Fosse resumiu com uma imagem poderosa em seu filme “Cabaret”, na cena em que o integrante da Juventude Hitlerista entoa “Tomorrow belongs to me”[veja aqui, acessado em 13 jan 2021] -, eis um binômio que se tem trabalhado, não é de hoje, para a formação de certezas cujas bases concretas podem ser, até, frágeis, mas têm o poder de convencimento decorrente de as pessoas ouvirem a si próprias em boca alheia.
Um exemplo recentíssimo disto está narrado, nesta revista, mesmo, pela Professora Patrícia Bianchi [Pegasus e a pretensão de imortalidade dos narcisos. veja aqui, acessado em 12 jan 2021], quanto ao ressurgimento do movimento antivacina à base da teoria conspiratória de que o vírus da COVID19 teria sido fabricado por encomenda do Governo comunista chinês para impedir os cristãos de cultuarem a Deus em suas igrejas e bombardear economicamente os países que lutam contra esses poderosos agentes de Satanás, uma narrativa que, como bem assinala a articulista, a despeito de ter sido já descartada a partir de evidências de que o vírus teria surgido a partir da seleção natural de um hospedeiro animal para seres humanos, ainda encontra atrativos, porque, ao cabo, dá esperanças aos que elegeram o atual ocupante do trono presidencial no Brasil de terem feito uma escolha que se poderia traduzir pela frase latina “Deus vult”, que, contextualmente, significaria “é a vontade de Deus”, e, pois, os faz sentirem-se, eles mesmos, como os eleitos para fazerem “o Bem triunfar sobre o Mal”.
Para essas pessoas, somente a Esquerda é que teria uma estrutura tão sofisticada para armar fábricas de “fake news”, a Direita se comporia de gente simples que age na maior das boas fés, em nome do que entende ser o bem maior para a nação das pessoas honestas, e quem tentar provar o contrário é inimigo de Deus, da Pátria e da Família, não mereceria nem ocupar espaço vital.
O negacionismo à ciência, repetindo a postura da Idade Média e do início da Idade Moderna, convertendo a veracidade das proposições em uma questão de “o que me dá esperança”, “o que prova que eu sou mais querido de meu Deus do que o restante da humanidade”, é um componente necessário do móvel deste tipo de conduta, de que tive a oportunidade de me ocupar em texto publicado nesta revista, mesmo [CAMARGO, Ricardo Antonio Lucas. Os fantasmas da certeza e do fanatismo (glosas a um texto de Rui Vianna. In: veja aqui, acessado em 31 dez 2020].
Nem se pense que a titularidade de diploma de curso superior seria uma vacina eficaz contra este outro vírus de caráter psicológico, que faz com que indivíduos de olhos injetados estejam dispostos a mostrar que são “bons patriotas”: os “bons alemães” que realizaram o famoso auto-de-fé de 1933, queimando livros que comprometiam a saúde da cultura do Reich, eram, em sua maioria, estudantes universitários comandados por Joseph Paul Goebbels, que tinha obtido seu título de Doutor em Filosofia com uma tese sobre o romantismo alemão.
De qualquer modo, vale a pena refletir sobre esta Passagem da autobiografia de Franz von Papen, centrista (tal era o nome do seu Partido, o do Centro) articulador da investidura de Hitler como Chanceler, serve de alerta para os que subestimam os perigos concretos de ingressarmos numa Espanha franquista diante de uma remotíssima possibilidade de "venezuelizar-se o Brasil":
"We realized It would not be easy to bring Hitler and his party to a sense of statesmanlike responsibility. But we hoped to oppose radical tendencies by the application of christian principles. I have already described what care was taken to ensure that Nazi influence in new Government was not too strong. [...] My own fundamental error was to underrate the dynamic power which had awakened the national and social instinct of the masses" (PAPEN, Franz von. “Memoirs”. Transl. Brian Connell. London: Andre Deutsch, 1952, p. 256). - Tradução livre: “Nós nos demos conta de que não seria fácil trazer Hitler e seu partido para um senso de responsabilidade típico do estadista. Mas esperávamos opor às tendências radicais a aplicação de princípios cristãos. Já descrevi o cuidado tomado para assegurar que não fosse tão forte a influência nazista no novo Governo. [...] Meu próprio principal erro foi subestimar o poder dinâmico que despertou o instinto nacional e social das massas”.
RICARDO ANTONIO LUCAS CAMARGO* Professor nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professor Visitante da Università degli Studi di Firenze – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP.
Agradeço as observações da Madeleine, que apresentou precisa síntese de uma estratégia tão antiga quanto a vida civilizada, que é o trabalhar a mente das pessoas como um solo fertilizado por tudo o que possa gerar esperanças, plausíveis e implausíveis, e pelos medos, distraindo-as do que efetivamente lhes causa dissabores. Edgar Morin traz algumas pistas bem interessantes sobre a origem do pensamento mágico e seu poder de sedução, bem como a sua tensa relação com o pensamento científico e o pensamento religioso. Um dia, hei de fazer uma reflexão mais demorada sobre isso, que é a preocupação que me persegue há décadas, e eu não tenho dúvidas de que o advento desses populistas de hoje muito deve ao poder de…
Ricardo Camargo conseguiu flagrar o momento de incertezas em decisões históricas, tomadas ao sabor de crises econômicas e políticas, para encontrar saídas aparentemente aceitáveis, sem prever os efeitos da irracionalidade de grupos acessíveis ao comando centralizado e voraz de palavras mágicas ditas por aproveitadores do momento que lhes agradavam ouvir. Apontar inimigos imaginários continua sendo uma técnica adotada pelos populistas de plantão, exige menos explicação, explora a falta do senso crítico e distrai a atenção da plateia dos verdadeiros problemas a serem enfrentados pelos governos.
Obrigado, Professor Marés. É terrível, muitas vezes, termos de dar razão a Nietzsche quando fala na "vontade em direção ao poder" como impulsionadora do existir humano, convivendo com o "instinto de rebanho", que conduz os respectivos integrantes a, pela comunhão em termos de percepções e mesmo de ficções, julgarem-se, por estarem neste mesmo rebanho, aglutinados em torno de um Guia ("Fuehrer" ou "Duce", em alemão e italiano, respectivamente), superiores aos que se lhes assemelhem e, pois, merecedores do existir, do ocupar espaço na terra. Numa dimensão menor, a própria atitude e visão dos estudantes do filme "Festim diabólico", de Alfred Hitchcock.
Excelente texto e análise, com a sempre erudição de Ricardo. O texto nos faz pensar onde estão as fraquezas dos que se apresentam como fortes e onde está a razão da irracionalidade.