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Diga uma palavra

-GEAN B. DE MORAES-


Arte - Gean B. de Moraes

Diga uma palavra, como quem soletra. Por exemplo, pan-de-mi-a. Repita essa palavra, infinitamente. Assim, sozinha, a musicalidade na pronúncia, talvez, deslize do real e assuma outros contornos. Quem sabe, até se inflame em imaginação – essa existência xifópaga da memória. Ou se condense em fantasias – essa instância indissociável dos fantasmas.


Nesse eterno agora, enquanto sua pronúncia lhe confunde porque se arrefece e queima na voz rouca, a imago que vem é a indiferença. Ela se achega na mais perfeita forma e estatura. A letra. Exata e completa porque pressupõe um distanciamento, uma abstração e, em sua mímica mais precisa, uma racionalização premeditada.


Não sei se você, a essa altura, já percebeu que, possivelmente, foi ela, a letra, quem te guiou a esse estado rastejante. Enquanto você diz pan-de-mi-a, com a devida indiferença, seu corpo transmuta-se, prescindindo de sua natureza polimorfa cuja riqueza, um dia, foi não ter direção definida, não ter centro, não ter hierarquia, nem ordem... e assume então uma linearidade postiça. Agora, você é tal qual a letra.


E munido dessa palavra e outras, ou melhor, linearmente magnetizado pelas palavras, você se arrasta com vírgula e ponto, também com ponto sobre uma vírgula, indicando pausas na fala, separando ideias, listando tópicos, moderando os ajuntamentos e os vazios. Um movimento raso de prestidigitação simultânea governando seu corpo e suas palavras, em pleno contágio.


Seria bom que você pudesse se atentar para um elemento dessa sedução entre seu corpo e sua palavra. Me refiro à dimensão performática do entonar. Para dizer o essencial, no paralelo entre sua voz e sua letra, note que há duas representações recorrentes de entonação: o ponto de exclamação e o ponto de interrogação. Preciso que, agora, você considere o ponto de exclamação em seu mais recente afeto inevitável.

Modulando a leitura da palavra pan-de-mi-a à altura de um pensamento exclamativo, proponho que você reconheça o seu lugar no contexto da disseminação nacional do SARS-CoV2. Você está bem aqui.


E agora você, tal qual a letra, pode se distanciar de si e assistir o sujeito e sua voz volumosa e enfática tentando, a todo custo, se dizer soberano e dono do mundo, mesmo que a força de agentes nanoscópicos prossigam derrubando, por dia, mil corpos desse sujeito vaidoso.

Mas, preciso que sua posição seja a de quem não confirme, nem legitime a exclamação. Pelo contrário, desconfie dela. Consciente de seu estado contraditório, observe o que nela indica um princípio de não identidade entre o sujeito e o traço. Não esqueça o que, um dia, lhe disse Mondzain: “a exclamação é irmã do oxímoro.”

E agora você, tal qual a letra, pode se distanciar de si e assistir o sujeito e sua voz volumosa e enfática tentando, a todo custo, se dizer soberano e dono do mundo, mesmo que a força de agentes nanoscópicos prossigam derrubando, por dia, mil corpos desse sujeito vaidoso.


É que ele não se reconhece na trajetória dos que se vão. A sua crença e seu afeto, repleto de exclamações, estão aferrados ao que Ursula K. Le Guin chama de o ato de calar, com agilidade e engenho, o que não é ele, para que assim a História da Ascensão do Homem Herói continue sendo contada.


Essa “maravilhosa e venenosa história” exige que todos que não são heróis fiquem quietinhos para que ela prossiga sendo dita em cima “de um palco ou de um pedestal ou de um cume.” O seu relato é sempre em louvor do homem que vem, com armamentos, com propaganda, letra e cifrão, tomar tudo de assalto e “através de porta-vozes e Legisladores”, decretar o que é história e o que não é história. E você? Você é herói?


Note como, agora, você responde a essa provocação. Esse é o momento de colocar sua voz em paralelo com sua história, com a nossa história, para lembrar como o ponto exclamativo participa do assalto realizado por porta-vozes e legisladores. Você lembra o que Mondzain disse? “Jamais o registro exclamativo foi tão utilizado quanto nas fábulas cristãs, que, justamente, construíam a futura ordem dominante.” ¹


Eu vou parafrasear a pensadora, só que sem o seu otimismo, para que você entenda melhor. A combinação de um registro exclamativo com a instauração de uma nova lei é a nossa aventura histórica de submeter povos inteiros a uma transmudação violenta da vida, desarraigando-a, constantemente, com uma energia ficcional que aponta para um gozo, tão distante, que jamais é alcançado.


Nas tonalidades expressivas desse sujeito siderado, há indícios de uma espera que pode ser solidária do afeto narcísico desfigurado pelo espaço de terror que é instaurado por porta-vozes e legisladores que exclamam.

Agora, outra vez, distancie-se de si e se assista. Ouça e veja como o ponto exclamativo se apresenta a você, todos os dias. Esse sujeito imerso em precariedade e governado por repertórios de máximas normativas, traz consigo uma estilística siderada. Ele está sempre pronto a legitimar sacrifícios, com seu choque de palavras e fotos.


Ele é o profissional de Educação que, como disse Wendy Brown, formula “um discurso nacional-teológico de sacrifício moralizado” e, assim, aceita como natural os recordes sucessivos de morte e um sistema de saúde em colapso permanente. Ele é o jovem submetido à uberização, aderindo ao enunciado psicológico de positividade, a qualquer custo. E, para isso, encena uma certeza sorridente e exclamativa, em defesa da Economia, esse deus inquestionável e caprichoso que exige sempre “o sacrifício necessário.”


Mas, não esqueça: quando sugere uma camada ficcional subterrânea, capaz de instaurar uma suspensão na continuidade paralisante, dita sempre de modo exclamativo, Mondzain nota, na dimensão polissêmica da “siderante experiência das coisas”, algo que nos indica um lugar para fora da história do Herói, que é sempre assassina.


Nas tonalidades expressivas desse sujeito siderado, há indícios de uma espera que pode ser solidária do afeto narcísico desfigurado pelo espaço de terror que é instaurado por porta-vozes e legisladores que exclamam.


A consciência do desamparo e da contradição, talvez, só seja possível através de um exercício de compreensão que se abra ao espanto e à imaginação. E compreender passa pela voz, pela palavra, pela letra, pela imagem e pela visão.

Diga uma palavra, como quem soletra. Por exemplo, re-si-li-ên-cia. Por exemplo, gra-ti-dão.

¹A primeira publicação impressa em que o ponto de exclamação se faz presente é em um livro de tradição anglicana, de 1553, chamado O Catecismo de Edward VI. A Bíblia impressa em língua portuguesa incluiu o ponto de exclamação pela primeira vez, no século XVIII. É também no livro sagrado que o Brasil tem presente o seu primeiro traço exclamativo.

²Atualmente, a exclamação parece se reinventar em diversidade de forma e força, se tornando visível nas instâncias verbo-visuais e figurativas, principalmente, das conversas virtuais, onde seu uso é frequente. Em vídeo do Nexo Jornal, produzido por Guilherme Prado, em 2016, vemos que uma pesquisa indicou que “mensagens terminadas com exclamação são percebidas como mais sinceras do que as com ponto final.” Seria possível dizer que, na nova fase da sociedade do espetáculo, os emoticons e stickers, participando dos estados de sideração organizados por mídia e poder, são os mais recentes “pontos de exclamação?

 

Gean B. de Moraes é contista, educador, historiador da Arte e estudante de Letras.


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1 Comment


Ricardo Antonio Camargo
Ricardo Antonio Camargo
Sep 19, 2021

Texto primoroso do Gean, que contém não somente informações importantes sobre a origem de sinais gráficos, em especial o que tradicionalmente assinala a imperatividade e a emotividade, ao mesmo tempo, quando não informa, ainda, a ironia, como também denuncia, concretamente, um dos mais recorrentes sintomas do fascismo, que é o chamado constante ao sacrifício pessoal como um dever, e não como uma conduta louvável precisamente por não ser exigível, e do heroísmo como uma postura normal. Ao fascista horroriza a pergunta de Charles Dickens no seu "David Copperfield": "serei eu o herói da minha própria vida, ou meramente sua vítima?" E horroriza, porque ser herói é o que justificaria o seu "direito de existir", quem não é herói, para o…

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