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As Emendas Parlamentares Impositivas e o Círculo Vicioso do Fracasso

- Márcia MBF Semer -

 


Daron Acemoglu e James A. Robinson são os vencedores do Prêmio Nobel de Economia de 2024. Estudiosos das questões relacionadas à prosperidade das nações e professores das mais renomadas instituições de ensino dos EUA – o primeiro do MIT e o segundo de Harvard e Chicago University, Acemoglu e Robinson são co-autores de diversas obras, entre as quais destacamos o best seller Por que as Nações Fracassam, publicado em português em 2022 pela Editora Intrínseca. (1)


Essa específica obra dos premiados economistas é o resultado de quinze anos de pesquisas acerca do desenvolvimento da história política e econômica de diversos países. Escolhidas entre economicamente bem-sucedidas e fracassadas, a seleção de nações se fez para que se tentasse entender a razão do enorme desequilíbrio e a partir daí formular uma teoria capaz de explicar o cenário existente. E foi exatamente a teoria econômica derivada desse estudo que conferiu aos professores a premiação de repercussão mundial.


De feição institucionalista, a explicação teórica de Acemoglu e Robinson para o sucesso ou o fracasso das nações está no perfil inclusivo ou excludente de suas instituições políticas e econômicas.


O argumento central dos estudiosos sustenta que as nações que historicamente, por razões variadas e muitas vezes contingentes, conseguiram modelar instituições políticas inclusivas e, a partir daí, criar bases econômicas igualmente inclusivas são as nações que conquistaram o sucesso, entendido como o desenvolvimento econômico capaz de promover inovação e com isso melhor qualidade de vida à sociedade, em arranjo sustentado no tempo.  Já as nações onde dominaram ou dominam instituições políticas e econômicas extrativistas, vale dizer, de perfil elitista ou oligárquico, pouco democráticas ou autoritárias, são as fracassadas.


A teoria de economia política desenhada pelos docentes encerra uma defesa robusta da democracia política e econômica como caminho institucional do desenvolvimento.


Identificando a origem histórico-temporal da enorme diferença econômica que se estabeleceu entre as nações na Revolução Industrial, Acemoglu e Robinson vão relacionando elementos presentes no curso da história de diferentes Estados nacionais e extraindo daí explicação para o resultado econômico alcançado por cada qual.


Percebem que é possível afirmar que todos os países bem-sucedidos economicamente compartilham um passado de orientação institucional semelhante, do mesmo modo que as nações pobres estão estruturadas a partir de um arcabouço histórico-institucional igualmente comum entre si.


Assim, embora reconheçam que sua teoria não pode explicar tudo, vêem nas conclusões decorrentes de seus estudos “uma explicação útil e empiricamente bem fundamentada” (2) que, se não permite “previsões precisas quanto a quais sociedades serão mais prósperas quando comparadas a outras” (3), “oferece algumas orientações quanto a que tipo de sociedade tem maior probabilidade de obter crescimento econômico ao longo das próximas décadas” (4).


Em Por que as Nações Fracassam, obra de leitura fácil e agradável, Acemoglu e Robinson dão início à tarefa de expor seu ponto de vista institucionalista desconstruindo algumas teorias que dominam ou em algum momento dominaram as explicações ventiladas para o tema da desigualdade econômica entre as nações e que pautaram, em boa medida, o tipo de ajuda internacional e propostas de políticas públicas endereçadas aos países pobres por nações bem-sucedidas e organizações internacionais bem-intencionadas, via de regra com resultados aquém dos esperados.

É aí que se nos são apresentadas as cidades homônimas e vizinhas de Nogales, situadas na fronteira entre EUA e México, uma no Estado norte-americano do Arizona, e outra no Estado mexicano de Sonora. Instaladas em localidade onde o relevo, a vegetação, o clima e até a composição étnico-cultural dos habitantes é a mesma, a Nogales americana é bem diferente da Nogales mexicana. A Nogales americana é bem estruturada, organizada, com acesso da população a escola, saúde, água, energia, comércio e oportunidades. A Nogales mexicana é quase o avesso disso, bem mais pobre e com problemas reais de acesso da população à educação, saúde, segurança e oportunidades.


Obviamente, nesse cenário, cai por terra toda e qualquer teoria que relaciona sucesso ou fracasso econômico à localização geográfica ou ao substrato étnico-cultural. O exemplo de Nogales demonstra que não estão no relevo, no clima, no tipo de cobertura vegetal e nem mesmo na cultura dominante as razões determinantes do sucesso ou do fracasso econômico nesses tempos de capitalismo. Nogales é o campo de pesquisa a céu aberto que permite aos estudiosos infirmar com bastante segurança todas essas teorias deterministas que embalaram e por vezes ainda embalam tanto discursos mais estruturados (como a teoria de Max Weber que relaciona a cultura protestante com o sucesso capitalista) quanto outros enviesados ou preconceituosos mesmo.


Na mira dos professores aparece ainda a hipótese da ignorância como mais uma teoria que não funciona para explicar a desigualdade na riqueza entre os países. A hipótese da ignorância é aquela segundo a qual as nações pobres são pobres porque seus governantes não souberam e não sabem manejar políticas públicas necessárias ao impulsionamento dos mercados, imprescindíveis à formação de riqueza. Se essa hipótese fosse sustentável a instrução ou adequada orientação passada aos governantes seria motivo suficiente para reverter o quadro de pobreza de inúmeros países. Mas todos sabemos que as transformações não ocorrem com essa facilidade, pois estão atreladas a outros fatores decorrentes dos arranjos político-institucionais que aí sim, sustentam Acemoglu e Robinson, são determinantes. Nas palavras dos autores, “(...) não é a ignorância dos políticos, mas os incentivos e os limites com que eles se deparam e que se originam das instituições políticas e econômicas da sociedade” (5) que constituem os maiores obstáculos ao atingimento do sucesso.


Talvez uma frase de rápida compreensão possa expressar com razoável fidelidade o pensamento dos premiados estudiosos: “É a política, estúpido.”


Sim, é a política, espaço de moldura da institucionalidade que, grosso modo, constitui, na compreensão dos economistas, o elemento definidor do sucesso ou do fracasso das nações. Em suas precisas palavras, “Nações fracassam quando têm instituições econômicas extrativistas, apoiadas por instituições políticas igualmente extrativistas que impedem, ou mesmo barram, o crescimento econômico. Mas isso significa que a escolha das instituições – isto é, a política das instituições- é central para nossa busca pela compreensão das razões de sucesso ou fracasso das nações.” (6)


E se a política é a ordem detentora da chave pra prosperidade, as crises são a porta da oportunidade para as mudanças, cuja concretização, a juízo dos professores, muitas vezes ocorrem (ou não) por situações contingentes nem sempre manejáveis. Mudanças, no entanto, notadamente as mudanças institucionais inclusivas não são movimento fácil de ocorrer em nações onde dominam elites oligárquicas, em razão dos ciclos viciosos da exclusão ali existentes, assim como nas nações bem-sucedidas, via de regra, convive-se com os ciclos virtuosos da inclusão a impulsionar o crescimento.


Observam Acemoglu e Robinson: “Assim como os círculos virtuosos levam à persistência das instituições inclusivas, os círculos viciosos criam forças poderosas que facilitam a persistências de instituições extrativistas. História não é destino, e os círculos viciosos não são inquebráveis, (...). Porém, são resilientes. Criam um processo poderoso de interação negativa, em que as instituições políticas extrativistas forjam instituições econômicas extrativistas, que por sua vez criam a base para a persistência das instituições políticas extrativistas.”(7)


Em Por que as Nações Fracassam o Brasil é personagem positivamente referido, exemplo de nação em que “ao contrário do que aconteceu na Inglaterra no século XVII – com a Revolução Gloriosa- ou na França na virado do século XVIII – com a Revolução Francesa, não houve revolução radical (essas são palavras dos autores) para dar início ao processo de transformação das instituições políticas de um só fôlego”. Transformação que “teve início nas fábricas de São Bernardo do Campo”, mas avançou  “por se traduzir numa mudança política fundamental no nível nacional, (...) com a transição do governo militar para a democracia” (8)


Na lição dos economistas em destaque, o caminho para o sucesso está no empoderamento de um amplo recorte da sociedade. E esse empoderamento foi o que enxergaram ter ocorrido no Brasil na transição da ditadura para a democracia inaugurada no processo constituinte de 1988.  O pluralismo, ensinam Acemoglu e Robinson, “pilar das instituições políticas inclusivas, exige que o poder político esteja amplamente disseminado na sociedade”. (9)


Circulos viciosos, porém, bem alertam os estudiosos, são resilientes e o perfil oligárquico da elite brasileira é em traço constituinte da história do país, de modo que sua latência é sentida, em maior ou menor intensidade, desde a promulgação da Constituição Cidadã, operando-se com investidas mais robustas, por óbvio, nos momentos de crise política e/ou econômica ocorridas desde então.


Promulgada em 05 de outubro de 1988, a Constituição da República soma até aqui 132 emendas ou alterações em seu texto original. Nesse balaio existem alterações que são de aperfeiçoamento do texto, no sentido virtuoso da expressão, mas há também modificações cuja vocação é garantir o poder político e econômico de alguns em detrimento do todo, o que, na teoria dos professores Acemoglu e Robinson, constitui a receita perfeita do chamado ciclo vicioso do fracasso.


Ninguém desconhece no Brasil que desde 2013 vivemos em turbulência política continuada. O segundo mandato de Dilma Rousseff, iniciado em 2015, foi objeto de contestação conservadora desde o primeiro dia, a ponto dela sofrer um impeachment forjado, cujos frutos foram, entre outros, uma reforma trabalhista que fragilizou os direitos dos trabalhadores e fulminou os sindicatos, o encaminhamento de uma reforma previdenciária que acabou se concretizando no governo subsequente, e a decantada PEC do Teto de Gastos, todas iniciativas voltadas a satisfazer o Mercado, que aqui no Brasil também é conhecido como “Faria Lima”, em referência a instituições do mercado financeiro que funcionam nessa avenida da cidade de São Paulo com nome de ex-prefeito.    


Mas ainda antes mesmo do impeachment, diante de um governo acossado e fragilizado já em seu primeiro ano do segundo mandato, o Congresso fez aprovar a Emenda Constitucional 86/2015, que prevê a execução obrigatória de emendas parlamentares individuais, criando o chamado Orçamento Impositivo. 


Construção jurídica teratológica para qualquer Estado, mas incabível por definição numa ordem constitucional presidencialista, instituto, a meu juízo, conceitual e estruturalmente inconstitucional no nascedouro, o Orçamento Impositivo confere ao parlamentar o direito de direcionar individualmente receita pública para a localidade que quiser, ainda que dentro de algumas balizas (a emenda 86 fala que parte dos recursos devem ir para a saúde, por exemplo). Pode-se dizer que, na perspectiva do planejamento estatal de políticas públicas, o Orçamento Impositivo “cessa tudo o que a antiga musa canta, que outro valor mais alto se alevanta” (10).


E alevanta-se com o Orçamento Impositivo um arranjo institucional que ressuscita em nova roupagem uma espécie de coronelismo ou mandonismo, bem como de clientelismo, levados a efeito pelas mãos de parlamentares, representantes, muitos deles, de elites agrárias, dentre outros segmentos.


O Orçamento Impositivo subverte, desfigura, deturpa o presidencialismo que, vale lembrar, foi a forma de governo escolhida pelos Constituintes e chancelada pelo povo em 1993 por plebiscito, a forma de governo, portanto, fruto de decisão direta da soberania popular. Por meio dele, é tirada das mãos do Poder Executivo, e colocada na mão nem propriamente do Parlamento, mas de parlamentares individualmente considerados, parte da decisão que no presidencialismo é própria, inerente ao Executivo e que consiste na decisão sobre as políticas públicas escolhidas e sua correspondente execução.


Desde a promulgação da Emenda Constitucional n. 86/2015, portanto, esse frankenstein integra o arcabouço institucional do país que, na lição dos vencedores do Prêmio Nobel de Economia de 2024, encarna o fortalecimento de modelo extrativista, de feição oligárquica, em movimento vicioso cujo resultado é -no curto, médio e longo prazos- receita certeira para o fracasso econômico da nação.


É verdade que os professores afirmam textualmente em seus estudos que não há receita para a prosperidade, que depende de instituições de natureza inclusiva. Mas é certo também que concluem com bastante segurança que instituições extrativistas são, essas sim, a receita inexorável do fracasso.


E como práticas extrativistas puxam outras iniciativas igualmente extrativistas- fenômeno que se pode denominar Círculo Vicioso do Fracasso- a Emenda 86/2019 foi turbinada em 2019 pela Emenda 100/2019, que tornou também obrigatória a execução de emendas apresentadas por bancadas estaduais, ampliando a fatia do bolo orçamentário transferido para as mãos do Parlamento. Só para se ter uma ideia da grandeza da coisa, entre 2014 e 2024 o valor das emendas impositivas saltou de 6,14 bilhões em 2014 (quando ainda eram endereçadas como sugestão ao Executivo) para 44, 67 bilhões em 2024, representando hoje cerca de 20% do conjunto das despesas discricionárias (em 2014 correspondia a 3,95%), segundo dados da Fundação Getúlio Vargas. (11)


Esse arranjo institucional de natureza extrativista já mostrou a que veio e se revelou em todo seu esplendor nas últimas eleições parlamentares, assim como nas eleições municipais de 2024. A taxa de reeleição que já mostrou tendência de alta em 2016- ano seguinte à aprovação de EC 86/2015- explodiu em 2024 com índices de reeleição de prefeitos da ordem de 67%, aponta reportagem da BBC. (12)


Com todo esse dinheiro na mão para fazer política em nome pessoal, os parlamentares instituíram um mecanismo que- além de violar o princípio constitucional da impessoalidade inscrito no caput do artigo 37- não só lhes garante a reeleição, mas a eleição de prefeitos, vereadores, deputados estaduais parceiros que passam todos a viver uma relação simbiótica de compadrio no pior estilo oligárquico-extrativista, mantido o Poder Executivo como uma espécie de refém.


Mais recentemente, o Poder Judiciário foi acionado para se manifestar sobre práticas abusivas, nada transparentes, em curso no Congresso no manejo das Emendas Impositivas. De relatoria do Ministro Flávio Dino, o tema foi apreciado, mas ainda apenas sob o prisma da integridade, do accountability, o que já gerou bastante barulho.

O fato é que esse modelo das Emendas Impositivas é alteração institucional que está por merecer toda a atenção da sociedade brasileira. Ele mutila a democracia, desfigura o presidencialismo, enfraquecendo o Poder Executivo ilegítima e inconstitucionalmente, ofende o primado da impessoalidade que deve reger as relações no Estado, o que também encerra inconstitucionalidade. Tudo isso é ruim e as razões jurídicas para o questionamento desse instituto me parecem sólidas.


Agora, se os aspectos políticos e jurídicos são ruins, a consequência econômica de manutenção desse instituto é trágica. Sua natureza extrativista, na linguagem de Acemoglu e Robinson, é perversa e nos joga de volta para um passado que tanto se lutou para superar quando da redação da Constituição de 1988. Mais, esse modelo das Emendas Impositivas ao alimentar o círculo vicioso de captura do poder parlamentar e local pelos mesmos, em arranjo tipicamente antidemocrático, excludente ou extrativista, verdadeiro retrocesso na amplitude efetiva dos direitos políticos da cidadania, nos joga nos braços do fracasso econômico da nação.


E no advento do fracasso nacional, vai nos sobrar de consolo e advertência aquela célebre e confusa, mas precisa, frase da presidenta Dilma: Não acho que quem ganhar ou quem perder, nem quem ganhar nem perder, vai ganhar ou perder. Vai todo mundo perder.

 

Notas: 

1.Acemoglu, Daron e Robinson, James A. Por que as Nações Fracassam, Rio de Janeiro, 2022, Ed. Intrínseca.

2. Op. Cit., página 479.

3.Op. Cit., página 486.

4.Op. Cit., página 486.

5.Op. Cit. página 75.

6.Op. cit., página 92.

7.Op. cit., página 408.

8.Op. cit., página 514.

9.Op.cit., página 513.

10.Camões, Os Lusíadas.

 

Márcia M. B. F. Semer é Advogada, Mestre em Direito Administrativo (USP) e Doutora em Direito do Estado (USP). Procuradora do Estado de S. Paulo aposentada. Membro Integrante do Conselho Consultivo do IBAP.

 


 

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