-PATRICIA BIANCHI-
As desigualdades entre mulheres e homens estampam relatórios e pesquisas acadêmicas relacionadas às questões de gênero. Na área ambiental, essas desigualdades referem-se às diferenças de funções e responsabilidades atribuídas e desenvolvidas pelos dois sexos; às disparidades no acesso e no controle sobre os recursos ambientais; além das diferenças de oportunidades de tomada de decisão naquele âmbito.
Costumam-se apontar que a raiz do problema de gênero provém das estruturas patriarcais e machistas, cujos traços originários remontam ao menos da Antiguidade, em quase todas as civilizações. Tais estruturas, historicamente construídas, apresentam-se hoje como o padrão de normalidade e racionalidade da sociedade, e permeiam as relações de forma consciente e inconsciente, independente do gênero que a exerça, produzindo uma violência, no mínimo simbólica, aos grupos marginalizados, incluindo as mulheres.
Assim, a desigualdade de gênero não é uma novidade, tampouco se apresenta como uma marca exclusiva do mundo contemporâneo. Paul Singer, economista e professor brasileiro de origem austríaca, afirmava que a subordinação das mulheres aos homens decorre de preconceitos seculares contra a sua capacidade e inteligência. Nesse contexto, a mulher seria vista como naturalmente dependente do homem ao qual deve obediência, devoção e lealdade. E, segundo Singer, essas noções são internalizadas por homens e mulheres, que as apreendem desde cedo observando os comportamentos dos pais e outros membros da família.
A opressão machista vem sendo enfrentada pelas mulheres pelo menos desde a Revolução Francesa, mas elas obtiveram conquistas significativas nos campos profissionais e políticos apenas a partir do século XX. No curso desse processo, a competição, típica do capitalismo neoliberal, chega ao seio familiar, aguçando a rivalidade entre cônjuges e demais membros familiares. Há um reforço da competição e um enfraquecimento da solidariedade, elevando-se o individualismo ao máximo nos diversos núcleos sociais.
Mesmo na Antiguidade, numa Atenas reverenciada como o primeiro governo democrático da história, as mulheres eram excluídas dos direitos afetos à cidadania. Juntamente com os escravos da época, a mulher vivenciava limitações sociais e era privada dos direitos políticos. Nos tempos do Império Romano, as mulheres viviam sob a égide do chamado “pater famílias”, que significava estar sob o poder do pai ou do marido. A propósito, a expressão “pátrio poder” esteve em vigor no Código Civil brasileiro até 2002, quando foi só então, em pleno século XXI, substituída pelo termo “poder familiar”.
Até há registros de indícios de sistemas matriarcais na chamada Idade do Bronze grega (cerca de 3000 a.C. a 700 a.C.), na cidade de Micenas e na ilha de Creta. Além disso, a história apresenta algumas exceções, normalmente lembradas, como Aspásia, esposa do estadista ateniense Péricles, uma mulher culta, reconhecida, inclusive, no círculo de filósofos como Sócrates; Agripina, mãe de Nero, que exerceu papel na política em Roma; os povos célticos e nórdicos, que a partir do século IV a.C. se destacaram por reconhecerem a importância da mulher em termos sociais e religiosos. As mulheres célticas e nórdicas aprendiam técnicas de combate, escolhiam seus maridos e participavam da vida política.
Além disso, há outros exemplos históricos como Joana D’Arc (século XV), a heroína da Guerra dos 100 anos, e a brasileira Ana Maria de Jesus Ribeiro, mais conhecida como Anita Garibaldi (século XIX), a heroína de dois mundos. Mas todas representam exceções em suas respectivas épocas. O padrão maciçamente seguido ao longo de toda a história foi o de mulheres subordinadas aos homens e sem voz ativa em suas relações.
A proposta ecofeminista é a construção da perspectiva de uma vida em sociedade e relacionamento com a natureza mais pautado em cooperação e solidariedade, em contraposição à atual tendência de competição e individualismo exacerbado.
Com a passagem da Idade Antiga para a Idade Média o patriarcalismo ganhou força em diversas religiões, dentre elas o cristianismo, fundado na existência de um Deus masculino. Na bíblia, a mulher, já no livro do Gênesis, é retratada na figura de Eva, como aquela que deu origem ao pecado original. E em várias passagens é recomendado às mulheres submissão ao homem e resignação. Nesse contexto, mulheres que exerciam livremente a sua sexualidade e crenças passaram a ser marginalizadas, vítimas de violência e mesmo mortas. A história reservou à mulher o papel de donzela, virgem e casta à espera de um príncipe ou herói. Isso se intensifica ou alivia de tempos em tempos, e, nesse imaginário, a mulher vem sendo classificada ao longo do tempo como santa ou bruxa, resignada ou puta, mulher para casar ou para ficar, e mais recentemente “linda, prendada e do lar.” Observa-se, aqui, que essa classificação não se aplica aos representantes do sexo masculino. Às mulheres servem tais corporificações maniqueístas.
Contudo, as novas gerações femininas estariam cada vez menos sujeitas à subordinação, ou seja, as mulheres encontram-se mais emancipadas do que há 60 anos, por exemplo. Mas, grande parte delas ainda encontra dificuldades de toda a ordem para ter, na prática, direitos e oportunidades equivalentes aos dos homens. E, nesse contexto, há quem aponte o ecofeminismo como uma via adequada para a solução deste e vários outros dilemas contemporâneos.
O ecofeminismo, muitas vezes visto como uma vertente do próprio movimento feminista, representa uma ideia que busca o equilíbrio entre o ser humano e a natureza, que fomenta a colaboração, ao invés da dominação, com relação às diversas formas de vida. O termo foi cunhado pela primeira vez pela escritora francesa Françoise d’Eaubonne, em seu livro Le feminisme ou la Mort, em 1974, onde ela tentou explicar como a luta pelos direitos femininos está relacionada às questões ligadas à sustentabilidade do próprio ambiente, num contexto pontuado pelo patriarcado que exerce poder sobre os corpos femininos e a natureza. A conseqüência desse processo seria a subordinação da natureza e da mulher perante o homem com base na crença do “poder do mais forte”.
A proposta ecofeminista é a construção da perspectiva de uma vida em sociedade e relacionamento com a natureza mais pautado em cooperação e solidariedade, em contraposição à atual tendência de competição e individualismo exacerbado. E esse tema traz à baila outro assunto que é a chamada justiça ambiental, que hoje abre um leque de questões e problemas que requerem a atenção de acadêmicos e gestores públicos, a fim de que se promova equidade e igualdade de condições no que concerne à distribuição e suporte dos efeitos nocivos advindos de danos ecológicos criados pelo homem.
A justiça ambiental vem assumindo contornos cada vez mais amplos e complexos, revelando problemas específicos como os de gênero, que necessitam de um olhar atento da comunidade nacional e internacional, num debate que vai além da gestão dos recursos naturais, incluindo questões referentes à parte das populações que sofrem sobrecargas de injustiças socioambientais, devido a razões financeiras, raciais, étnicas ou de gênero, de forma isolada ou sobreposta.
Num país onde, segundo dados do IBGE de 2017/18 - as mulheres trabalham em média 7,5 horas a mais que os homens por semana; que mais de 90% das mulheres declararam realizar atividades domésticas, declaração de apenas cerca de 50% dos homens; onde homens brancos continuam com os melhores rendimentos, seguidos de mulheres brancas, homens negros e, por fim, mulheres negras; onde 60,9% dos cargos gerenciais são ocupados por homens e 39,1% por mulheres, entre outros dados - revelam que, apesar de as mulheres representarem mais da metade da população brasileira, ainda são pouco representadas, e estão sujeitas a uma série de limitações em termos de oportunidades e acessos.
Em se tratando de meio ambiente, as mulheres têm um papel crucial em sustentar comunidades e gerenciar recursos naturais, mas freqüentemente suas contribuições não são reconhecidas ou são subvalorizadas. Pesquisa realizada no âmbito do IBGE aponta que as mulheres, em comparação com os homens, têm maior probabilidade de viver em pobreza, e também são mais vulneráveis aos impactos da mudança climática e outros riscos ambientais, especialmente em países em desenvolvimento. Estas diferenças são muitas vezes exacerbadas por outros fatores, como idade, status sócio-econômico e localização geográfica (IBGE, 2018).
A desigualdade ambiental pode se manifestar tanto sob a forma de proteção ambiental desigual; como pelo acesso desigual aos recursos ambientais. A proteção desigual dá-se com relação a não implementação de políticas ambientais, causando-se riscos, intencionais ou não, para a população mais vulnerável e carente. É importante frisar que essa desigualdade não existe em função do sexo ou das habilidades naturais dos indivíduos, mas revela-se como o resultado de um longo processo político, cultural e socialmente desenhado.
O estereótipo de mulher vulnerável, vista como fraca e com necessidade de proteção sempre foi reforçado socialmente, ocultando que as razões econômicas e sociais são as que melhor explicam o que pode ser percebido como a “vulnerabilidade” imputada às mulheres. Resultado de um papel de gênero socialmente determinado, as mulheres, na prática, são mais pobres do que os homens, e, por isso, mais propensas a viver em áreas de risco. Além disso, por assumirem aquele papel, elas também são mais propensas a lavar, passar, cozinhar, cuidar das crianças, num contexto típico do capitalismo e do patriarcado, que sustenta um sistema social onde o homem mantém o seu poder e privilégio em termos de liderança política, autoridade moral, chefia das famílias e controle dos bens.
A exploração das mulheres no local de trabalho e em casa, a divisão sexual do trabalho, e a desvalorização das mulheres na sociedade, restringem suas escolhas e mina sua capacidade de moldar a sociedade de acordo com as suas necessidades. Talvez o antídoto para isso seja trabalhar na construção de um novo paradigma, que envolva uma nova modelagem em termos de relações homem/mulher e homem/natureza, resignificando o papel da mulher e da natureza na pós-modernidade.
Em termos de sobreposição de situações e características que envolvem a injustiça ambiental de gênero, há o fato de que a mulher negra está na intersecção de mais de um tipo de dominação, no caso o racismo e o sexismo.
As mulheres desempenham um papel fundamental no processo de desenvolvimento. Em áreas rurais, é fácil elencar os casos em que exibem um protagonismo junto à produção de alimentos, manejo dos recursos naturais e decisiva participação nas ações comunitárias. Do ponto de vista do impacto do consumismo e do crescimento populacional, as mulheres têm papel decisivo, já que são elas geralmente que controlam o consumo dentro dos lares e o crescimento da população.
Em termos de sobreposição de situações e características que envolvem a injustiça ambiental de gênero, há o fato de que a mulher negra está na intersecção de mais de um tipo de dominação, no caso o racismo e o sexismo. A chamada teoria da interseccionalidade traz a ideia de que, apesar de todas as mulheres estejam de algum modo sujeitas à discriminação de gênero, outros fatores - incluindo raça e cor da pele, posição social, idade, etnia, ascendência, orientação sexual, religião, classe socioeconômica, cultura - combinam-se para determinar sua posição social.
Sobre esse ponto, a professora e pesquisadora norte-americana Kimberlé Williams Crenshaw explica que as molduras (frames) de dominação tais como gênero, raça, orientação sexual etc., tendem a se sobrepor, criando intersecções que, ao invés de aumentar a visibilidade daquela que se encontra em uma ou várias intersecções, torna-a invisível e às margens da sociedade. No âmbito da teoria da interseccionalidade, as mulheres negras acabariam marginalizadas dentro dos movimentos feministas e antirracistas, isso porque, na prática, segundo Crenshaw, não haveria diálogo entre esses movimentos.
Diante desse cenário, seria crucial pensar a interseccionalidade para além das tradicionais vulnerabilidades sofridas pelas mulheres, buscando-se entender como os eixos de dominação tradicionais se relacionam, partindo-se de um modelo pré-estabelecido socialmente, marcado pela desigualdade e pela imposição de múltiplos e sobrepostos fardos, a partir e em razão do gênero. Nesse contexto, questiona-se por que insistimos em repetir estruturas tão arcaicas? Por que tanta dificuldade/resistência em se apropriar do novo?
Por fim, o lento processo de mudança dos padrões culturais de gênero amenizou as tradicionais barreiras à entrada das mulheres no mercado de trabalho, reduziu a taxa de fecundidade e elevou os níveis de escolaridade das mulheres nas últimas décadas. Contudo, as desigualdades postas e impostas socioculturalmente às mulheres ainda dificultam suas trajetórias, tornando-as mais árduas e injustas, num sistema de opressão estruturada que termina por influenciar a sua relação com o próprio meio.
Apesar de toda evolução em termos de direitos femininos, ainda hoje os dados revelam o quanto a análise de gênero é determinante para o aprimoramento do cenário democrático brasileiro. Daí a necessidade de criação e implementação de políticas públicas com o propósito de se alterar essas desigualdades, caminhando-se na construção de uma sociedade mais justa, próspera e solidária nesse âmbito. E, nesses termos, o movimento ecofeminista poderá se apresentar como um aliado na construção desse novo mundo que vem, aos poucos e a duras penas, se abrindo para as mulheres.
Patrícia Bianchi é Doutora pela UFSC. Pós-doutora pela USP. Conselheira do CONSEMA e CONAMA. Professora de Políticas Públicas Ambientais do Mestrado em Direito do UNISAL.
O ótimo texto da Patrícia Bianchi, num certo sentido, dialoga com o que nesta mesma revista publiquei acerca das questões de gênero e a "opressão mais importante", e complementa-o, já que omiti, ali, a própria dimensão ecológica das relações entre masculino/feminino, embora tratasse de situações de aparente "empoderamento feminino" como, muitas vezes, representando reproduções das relações de opressão do mundo dominado pelo "masculino". Muito interessantes, entretanto, os exemplos que, em comum, têm o afastamento do estereótipo da mulher frágil, à espera do bravo guerreiro que as poupa e salva do perigo, embora cada uma delas tenha uma dimensão bem diferente. A heroína Joana d'Arc, morta ainda adolescente e santificada pela própria Igreja que a fez queimar, não representa um questionamento…