- Patrícia Bianchi -
Quem assistiu Marriage Story (2019) do diretor Noah Baumbach, deve ter sentido o impacto monumental de uma das falas de Nora, personagem da atriz Laura Dern no papel de uma advogada, quando ela ensaia o depoimento de sua cliente, Nicole (Scarlett Johansson), que está em processo de divórcio. Na cena, Nicole faz um relato sincero sobre sua vida à advogada, contando alguns de seus defeitos e virtudes. Em dado momento Nora a interrompe, e chama a sua atenção quando percebe que a cliente pretende declarar no tribunal que costuma beber de vez em quando uma taça de vinho, e que um de seus “pontos fracos” eram os insultos ao seu filho, ainda que por meio de um diminutivo carinhoso, quando ele passava dos limites. Nesse ponto, a advogada argumenta:
“Vou te interromper aqui. As pessoas não toleram mães que bebem e dizem ao filho: ‘idiota’. Eu entendo, também faço isso. Nós podemos aceitar um pai imperfeito. O conceito de um bom pai só foi inventado há uns 30 anos. Antes era normal que os pais fossem calados, ausentes, pouco confiáveis e egoístas. É claro que queremos que eles não sejam assim, mas no fundo nós os aceitamos. Gostamos deles por suas imperfeições, mas as pessoas não toleram essas mesmas coisas nas mães. É inaceitável em nível estrutural e espiritual. Porque a base de nossa conversa judaico-cristã é Maria, a mãe de Jesus, que é perfeita. Ela é uma virgem que dá à luz, apoia incondicionalmente o filho e segura seu cadáver quando ele morre. O pai não aparece. (...). Deus está no céu. Deus é o pai e Deus não apareceu. Você tem que ser perfeita, mas Charlie (o marido) pode ser um puto desastre. (...).”
Dern e Johansson como Nora e Nicole em Marriage Story (2019), Netflix - Cinema Blend.
A cena descrita, de menos de 1 minuto e meio, talvez tenha tido tanto impacto quanto o próprio filme. Mas a ideia aqui é mostrar que, independentemente de julgamentos morais, os discursos, as informações são construções humanas, e que nem sempre os fatos são revelados na sua integralidade ao interlocutor, sejam eles positivos ou negativos. O campo comunicacional envolve tantas nuances e artimanhas, que o bom senso e o acionamento de uma postura crítica apresentam-se como uma das mais caras necessidades na sociedade contemporânea.
Trazendo esse tema para um enfoque bem atual, em tempos de acervos de opiniões nas redes sociais, em meio à pandemia do Covid-19, questiona-se sobre qual o papel que cada um de nós exerce no âmbito comunicacional. O que nos move, ou nos leva a emitirmos opiniões sobre tantas notícias, das mais variadas especialidades, e nas mais diferentes áreas. Partindo-se da premissa, ainda que relativamente otimista, de que a maioria, de fato, acredita e quer contribuir para a solução de problemas cotidianos, que crê numa espécie de bem comum como meta sócio-política, então o que alimentaria essa polarização de opiniões e indivíduos com semelhantes e diferentes pontos de partida?
Todos têm direito a opiniões, mas, por mais verossímil que possam parecer, não deveríamos aceitá-las como um fato evidente. Quando alguém defende uma ideia se está argumentando. Tecnicamente, um argumento é formado por um conjunto de afirmações que leve ao menos a uma conclusão. Quem argumenta usa premissas, também chamadas de evidências, para sustentar o seu ponto de vista, o resultado que quer defender.
Mas, por que opiniões são apresentadas com roupagens de argumentos, muitas vezes sustentados por sistemas ilógico-irracionais, e são, ainda assim, referendados e compartilhados por milhares de pessoas nas redes sociais e fora delas?
Atualmente, lemos, por exemplo, notícias com a informação de que o governo chinês teria desenvolvido intencionalmente o coronavírus em laboratório, em contraste com alguns estudos científicos, incluindo um publicado na revista Nature Medicine (The proximal origin of SARS-CoV-2), que trazem evidências de que aquele vírus surgiu a partir de processos naturais de evolução dos seres vivos. Na visão dos cientistas, o vírus passou por seleção natural dentro de um hospedeiro animal, e depois chegou aos seres humanos, já com sua capacidade infecciosa. Foi de forma semelhante que no passado surgiram os surtos de SARS e H1N1, por exemplo. Mas, apesar das evidências científicas sobre o assunto, as falsas notícias conspiratórias fizeram grande sucesso.
Por outro lado, resta a impressão de que a intervenção humana na natureza, sem prevenção/precaução, teria dado origem às epidemias e pandemias contemporâneas, é ideia não muito propagada. A despeito de evidências científicas de que a interferência em ambientes selvagens para fins sobretudo mercadológicos, propiciou a transferência viral para animais domésticos ou humanos, que se adaptaram por meio de mutação. Assim, pela degradação do meio ambiente teríamos aberto uma porta para a pandemia! Sim, a Covid-19 seria, em última análise, fruto de degradação ambiental desordenada promovida pelo homem, já que o abate de animais silvestres, misturando-os a animais domésticos em galpões chineses sem condições sanitárias mínimas, representa hoje o cenário de maior probabilidade de origem do vírus, segundo cientistas.
As perdas humanas e econômicas em face da pandemia já são sentidas com bastante profundidade em alguns países como a Itália, Espanha e Estados Unidos, e o agravamento desse problema levou a um questionamento - entre especialistas e leigos - no mínimo interessante: manter o recomendado isolamento social (também preconizado pela OMS), ou levar uma “vida normal” com o propósito de não se trazer prejuízos para a economia?
Nesse contexto, jornais renomados como o britânico The Guardian; agências de notícias como a norte-americana Bloomberg, ou o diário norte-americano The New York Times, têm noticiado que em análises quantitativas de custo-benefício, as melhores estimativas disponíveis, divulgadas nos últimos dias, sugerem que os governos continuem com precauções ainda que caras, mesmo que tenham um grande impacto econômico. Nesse sentido, cientistas e estudiosos em economia apontam que “economia x vida” seria uma falsa escolha, e a qualificam como uma opção profundamente estúpida. Dizem os especialistas que a análise de custo-benefício geralmente confirma que muitas vezes é perigoso ser cauteloso, mas que com o coronavírus seria diferente. Os pesquisadores buscaram fundamentos nas mais recentes e sofisticadas ferramentas de pesquisa para as previsões de cenários, nas hipóteses de afrouxamento de medidas de isolamento social em meio à crise do coronavirus.
Contudo, apesar das evidências e da velocidade com que temos acesso a estudos relevantíssimos na atualidade, sobre os mais variados temas, o governo brasileiro segue a condução daquela crise com informações contraditórias entre a Presidência e o Ministério da Saúde, e a sensação que se tem é de estar-se num carro desgovernado.
As informações e diretrizes são divergentes e, por vezes, na contramão do que os cientistas e organizações especializadas recomendam. São tantas informações, tantos veículos, virtuais ou não, que a população em geral segue uma difícil cruzada de cumprir orientações, ainda que de forma precária, mas sem ter a certeza de que pratica a melhor estratégia. E aqui a insegurança e a ignorância propagadas também adquirem proporções pandêmicas.
Em vista dos últimos acontecimentos, então o que nos ajudaria a evidenciar os fatos nesse momento? Isso a fim de que tenhamos ideias lúcidas que possam nos conduzir a um caminho que nos leve à coerência, a uma saída desta crise com maior racionalidade.
O professor David Willian Carraher lança uma luz sobre essas questões, especificamente em sua obra “Senso Crítico: do dia-a-dia às ciências humanas”. Carraher explica que, quando um argumento é especialmente elaborado para apelar ao ouvinte, a argumentação resultante é chamada psicológica ou emocional. Nesse caso, defende-se algo, ainda que isso implique uma distorção dos fatos, e a evidência é escolhida especialmente para convencer o ouvinte da validade das conclusões. Tais apelos distraem a atenção do ouvinte dos aspectos mais racionais das questões. Na mesma linha segue o apelo à autoridade, que consiste em aceitar como verdadeira uma ideia porque uma autoridade ou especialista renomado a defende. A evidência, neste caso, seria substituída por credenciais acadêmicas, prestígio ou reputação de quem defende a ideia.
Carraher observa que a natureza humana é tal que as pessoas aceitam ideias e planos de ação por razões emocionais e pessoais, por questões de valores, conveniência ou preferência, muito mais do que por razões puramente racionais. Daí a necessidade de persuasão dos cientistas sociais, ou daqueles que se alinhem à chamada racionalidade.
Hoje viveríamos numa sociedade onde há muitos indivíduos que Carraher nomeia de “idiotas bem informados.” Esses seriam munidos de muita opinião e argumentos rasos, sustentando tais opiniões em construções cognitivas estruturalmente débeis. E essa questão também parece ter virado uma pandemia após o advento da internet.
Nesse contexto, o que deveríamos fazer? Como poderíamos nos precaver em meio a tantas opiniões? A solução deveria partir do questionamento das informações quando elas são apresentadas, de sua não aceitação de imediato sem reflexões, ou não aceitá-las apenas porque a fonte provém de uma “autoridade”, por exemplo. Deve-se, dessa forma, questionar se a fonte é digna de confiança, e tentar antever o que a fonte estaria tentando conseguir com a emissão daqueles e não de outros sinais.
Outra questão interessante está atrelada ao que o autor chama de realismo ingênuo. Segundo ele, o realismo ingênuo levaria o indivíduo a acreditar que está em contato direto com a realidade. Porém, o senso crítico pressupõe que nossas ideias não são fatos por si só. Fatos, por exemplo, não são considerados problemáticos, não são questionados. Um fato é aquilo que se afirma sem dúvida, sem controvérsia. Não é surpreendente, então, notarmos a tendência entre indivíduos menos críticos a encarar suas ideias e opiniões como fatos.
Por outro lado, Carraher adverte que o realismo ingênuo resulta numa tendência a tratar indevidamente certas questões como não problemáticas. Menciona-se, aqui, algumas ideias que, do ponto de vista de um leigo, provavelmente seriam encaradas como fatos (algo evidente, comprovado) como, por exemplo: a) o governo da Rússia é comunista; e b) a democracia é desejável. Nesse ponto, cabe observar que normalmente o que afirmamos são construções humanas e, portanto, não representam necessariamente a realidade. E, de outro vértice, no universo comunicacional há certas afirmativas que são evidentes e aceitas, ainda que por pessoas críticas, como, por exemplo, quando se diz que no Brasil falamos português e somos formados por uma população miscigenada.
Então o que nos nortearia nesse caos de técnicas linguísticas, que tem como espaço cativo (porém não exclusivo) a política, onde se costumam esboçar construções de pensamentos feitas “na medida” para nos confundir, nos distrair? Uma alternativa para essa questão seria se tentar seguir a boa e velha lógica!
Lógica é uma palavra originada do termo grego “logos”, que diz respeito a uma forma específica de raciocinar, e pode ser vista sob o ponto de vista do uso do raciocínio válido. Refere-se, precipuamente, à harmonia de raciocínio, seria a correta e equilibrada relação entre todos os termos, espécie de equilíbrio e alinhamento entre argumentos.
Contudo, a lógica pode ser deliberadamente não utilizada, pode ser facilmente rechaçada, ser subvertida, a fim de que se atinja determinado interesse. Em nome de interesses escusos, interesses próprios, interesses egoístas ou meramente particulares, ainda que seja (e o é muitas vezes) nomeada de lógica. Por isso, numa sociedade perdida em meio a tantas informações, tantos mimimis e blá-blá-blás, além de um pensamento pautado na lógica, precisar-se-ia também de bons líderes. Líderes que fossem alimentados por princípios elevados, líderes menos tiranos, mais empáticos, humanos, mais próximos do que somos em essência.
Numa sociedade contextualizada em meio a tensões e deficiências sócio-políticas das mais variadas, para que se faça valer direitos - ou interesses que estão fora da esfera do poder político-econômico - não nos resta outra opção senão atuar na própria arena política, ainda que pensemos que esta esteja desacreditada, e que não vale a pena lutar naquele âmbito.
Nesse ponto, Daniel Innerarity, filósofo e ensaísta espanhol, questiona se existe algo pior que a má política. Em resposta, o autor argumenta que seria ainda pior a ausência dela, ou a mentalidade antipolítica, já que isso aniquilaria as aspirações daqueles que não têm outra esperança a não ser a política, porque não teriam condições de exercer poder em outros âmbitos. Innerarity afirma que “Num mundo sem política, pouparíamos alguns trocados e não teríamos de assistir a certos espetáculos lamentáveis, mas aqueles que não têm outros meios para fazer valer seus pontos de vista perderiam a representação dos seus interesses e suas pretensões de igualdade. É verdade que, apesar da política, as coisas não lhes correm assim tão bem. No entanto, qual seria o seu destino se nem mesmo pudessem contar com uma articulação política dos seus direitos.”
Assim, uma crise, originariamente causada por uma má interação homem/natureza, que resultou na pandemia de um vírus, não pode prescindir à razão, ao bom senso. Não deveríamos esperar que essa crise, por si só, resolva nossos problemas. Se tivermos o sonho de uma sociedade mais justa, devemos ocupar o espaço político por meio dos recursos que dispomos, munidos de argumentos que sigam uma lógica, e que tenha por base a velha e boa razão.
No atual cenário, provavelmente a economia não ruirá por causa do coronavirus, e qualquer grande prejuízo econômico que tivermos também não será por conta exclusiva dele. A realidade que temos dificuldade de encarar é aquela que nos rondava mesmo antes da crise. Vivemos numa dinâmica social que nos subjuga, nos maltrata enquanto sociedade, e que não encontra grandes resistências porque fomos acostumados a apenas ser liderados, condicionados a não ocupar o espaço político de forma mais incisiva.
Quanto ao questionamento inicial, sobre qual o papel que cada um de nós exerce em termos comunicacionais e, portanto, no mundo, entende-se que a palavra, a linguagem pode estar sendo utilizada sem o cuidado, a frequência e a nobreza que esse instrumento requer, e isso nos estaria levando a interpretações equivocadas da realidade, e estaríamos nos distanciando dos propósitos originais enquanto sociedade pela má utilização ou subtilização dos instrumentos linguísticos, prejudicando nosso discernimento, e nos enfraquecendo enquanto atores políticos, cidadãos.
Nesse caso, desconfia-se que a séria pandemia do coronavírus, que vem se desenrolando em meio a tantos mimimis e blá-blá-blás, pode estar sendo utilizada em favor de manipulações, conformismos, e servindo de “cortina de fumaça” para tantas crises que, de modo paradoxal, infelizmente, encontramo-nos acostumados.
Por outro lado, nesse cenário podemos ver uma oportunidade de reflexão intensa, num movimento que vislumbre o resgate à lógica, na busca de uma forma de linguagem e pensamento que seja formalmente válida e coerente, que nos mostre com maior frequência a realidade em que vivemos para que, assim, possamos agir socialmente e politicamente de forma mais consciente. Quem sabe aproveitamos a crise para crescermos, agora com base em novas premissas. Lembrando, por fim, que nesse barco que ora emerge, ora afunda, somos todos tripulantes.
Patrícia Bianchi é professora de Direito Ambiental e associada da APRODAB.
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