Guilherme José Purvin de Figueiredo
Em 1992, na condição de anfitrião da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, o Brasil tornou-se uma das mais respeitadas lideranças mundiais na defesa ambiental do Planeta Terra. Foi na cidade do Rio de Janeiro que 179 nações aprovaram, dentre outros documentos internacionais, a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) e a Convenção Quadro sobre Mudanças Climáticas (CMC). Quando lemos nas manchetes dos jornais a sigla COP (Conferência das Partes), devemos recordar que esse é o órgão supremo da CMC que, desde 1995, reúne-se anualmente para debater a situação global dos efeitos provocados pelas mudanças climáticas e buscar alternativas para a mitigação dos seus danos.
Ocorre que, conspurcando uma tradição que já durava pelo menos 25 anos, em novembro de 2018 o então presidente Michel Temer deu início a uma sucessão de atos que, no plano internacional, resultaram na destruição do prestígio que o país havia adquirido na condução dos debates sobre os mais importantes temas de Direito Internacional do Meio Ambiente, comunicando a decisão de não sediar em 2019 a COP-25, que acabou sendo realizada em Madri. Em referido encontro, que teve a ativista Greta Thunberg como uma das estrelas, o Brasil foi acusado de desídia na fiscalização ambiental e de fomento ao desflorestamento e ao garimpo ilegal. O rompimento da barragem de Brumadinho, os ataques aos guardiões das florestas (povos ribeirinhos, indígenas e quilombolas), os incêndios na Amazônia e o vazamento de óleo nas praias do Nordeste foram alguns dos retratos exibidos no encontro. Ao aumentar o número de agrotóxicos e culpar ONGs ambientalistas, Jair Bolsonaro e seus assessores alinhavam-se com outro pária ambiental: os EUA de Donald Trump.
Reconstruindo a imagem do Brasil
Esta herança maldita, simbolicamente representada pelo troféu "Fóssil do Dia", concedido ironicamente ao nosso país pela Climate Action Network, é agora gerenciada por Luiz Inácio Lula da Silva em seu terceiro mandato presidencial.
Nesse sentido, um dos mais importantes gestos do novo governo foi a reunião de Lula com Xi Jinping em Beijing no dia 14 de abril passado, ocasião em que os dois países emitiram declaração conjunta sobre o combate às mudanças climáticas.
Ítem de importância crucial nessa declaração foi a retomada do respeito à Ciência, que vinha sendo ao longo dos últimos quatro anos alvo de pesada bateria negacionista. O reconhecimento de que o alerta da comunidade científica internacional sobre a inequívoca responsabilidade humana por radicais mudanças no sistema climático global é, por si só, um passo importantíssimo no resgate da credibilidade de nosso país no exterior como a maior potência mundial em biodiversidade.
Ademais, a declaração conjunta Brasil-China destaca a responsabilidade histórica dos países desenvolvidos pelas emissões de gases de efeito estufa e os conclama a assumir a liderança na ampliação das ações com vista à neutralidade climática antes de 2050. Para isso, é imprescindível o financiamento climático, para que não seja negado o direito ao desenvolvimento. Trata-se de postura que vem sendo reiterada pelo Brasil desde os idos de 1972, ocasião em que o Brasil assumiu a liderança dos países subdesenvolvidos na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo. Esta referência na declaração conjunta é, de certa forma, uma provocação ao governo Joe Biden que, em fevereiro passado, ofereceu US$ 50 milhões para o Fundo Amazônia, valor considerado muito aquém do esperado pela diplomacia brasileira para fazer face aos estragos provocados pela gestão anterior.
A implementação de uma transição justa para uma economia de baixo carbono e resiliente ao clima nos países em desenvolvimento, de acordo com a declaração, custará trilhões de dólares, mas o financiamento climático fornecido pelos países desenvolvidos continua aquém do compromisso de US$ 100 bilhões por ano, que já era insuficiente em 2009.
Brasil e China também enfatizaram a necessidade de combinar uma ação urgente para o clima com a conservação da natureza para alcançar os dezessete Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), incluindo a erradicação da pobreza e da fome, sem deixar ninguém para trás. Os Objetivos 1 (Erradicação da pobreza) e 2 (Fome zero e agricultura sustentável), expressamente destacados na declaração, foram, por sinal, as principais bandeiras políticas na campanha eleitoral do Governo Lula. (Leia aqui os ODS).
Reiterando o compromisso de ampliar, aprofundar e diversificar a cooperação bilateral sobre o clima, Brasil e China afirmaram a intenção de empreender esforços conjuntos para uma melhor governança global no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC), de acordo com a equidade e o princípio de responsabilidades comuns, mas diferenciadas e respectivas capacidades, à luz das diferentes circunstâncias nacionais, no contexto do desenvolvimento sustentável, do inalienável Direito ao Desenvolvimento e dos esforços para erradicar a pobreza e a fome.
Acordo de Paris
A declaração alude também ao Acordo de Paris. Trata-se de um compromisso mundial que prevê metas de redução da emissão de gases do efeito estufa. Sua entrada em vigor dependeria da ratificação de um número de países responsável pela emissão de 55% desses gases. Os EUA aderiram a ele em 4/11/2016 (Gestão Barack Obama) mas, em 2017, o Direito Internacional do Meio Ambiente sofreria duro golpe quando Donald Trump anunciou a intenção de rompê-lo. Em fevereiro de 2021, contudo, o acordo foi retomado por Joe Biden e, até novembro de 2022, já havia sido assinado por 196 países. Brasil e China reconhecem que o Acordo de Paris é um guia para que a comunidade internacional mantenha a média global da temperatura planetária abaixo 2º C acima dos níveis pré-industriais e, mais ambiciosamente, para que persiga a meta de 1,5º C.
Ao rejeitar o unilateralismo (leia-se, a sujeição plena aos ditames da economia dos EUA, francamente dependente da queima de combustível fóssil), Brasil e China fortalecem o anseio por um Direito Internacional do Meio Ambiente que seja, democraticamente, delineado de modo multilateral, inclusive com seus parceiros dentro do G77+China.
Vale lembrar que os EUA são os maiores consumidores de petróleo, gás natural e carvão, liderando a produção mundial de petróleo a partir da exploração do xisto por meio de uma técnica extremamente danosa ao meio ambiente, o fracking. Além disso, ainda importa petróleo dos países da OPEP e do Canadá. São igualmente o maior produtor e consumidor de gás natural do mundo. O consumo dessa fonte de energia aumenta a cada ano, para a geração de eletricidade e aquecimento.
Os dois países saudaram a mensagem política central da COP 27 (Cúpula do Clima de Sharm El-Sheikh), em particular a necessidade de meios de implementação para os países em desenvolvimento, em momento em que o Acordo de Paris está sendo implementado em conformidade com a melhor ciência disponível e com base na equidade e no princípio de responsabilidades comuns, mas diferenciadas, e respectivas capacidades, à luz das diferentes circunstâncias nacionais (verbis). No entanto, ressaltaram a necessidade de apoio previsível e adequado dos países desenvolvidos, incluindo financiamento climático com escopo, escala e velocidade necessários e comensuráveis.
A exortação é importante, pois estamos longe de um consenso mundial acerca da necessidade de mudança radical de rumos na economia mundial. Vale aqui lembrar as ponderações de Pierre Charbonnier a respeito da resistência neoliberal da direita. Para esse pensador, embora tenha o Acordo de Paris sido assinado com entusiasmo geral no ano de 2015, já na oportunidade ele deixava "entrever a emergência de uma diplomacia de novo tipo, responsável por trazer o concerto das ações para a era do clima. A despeito das fragilidades constitutivas desse acordo, é essa articulação entre cooperação diplomática e política climática que os novos mestres do caos atacaram: fora de cogitação, assim, a ideia de se fundar uma nova ordem mundial levando-se em conta a limitação da economia" (Abundância e Liberdade: uma história ambiental das ideias políticas. São Paulo : Boitempo, 2021). Por isso, a sutil observação: China e Brasil concordam com a mensagem política central da COP-27, mas esperam muito mais do que essas conferências vêm se tornando - nas palavras de Greta Thunberg, eventos que dão pouco espaço para a sociedade civil e que, na prática, tornam-se palco para empresários divulgarem seu marketing de sustentabilidade, ou seja, nada mais do que “greenwashing” (Confira declaração aqui).
É de se esperar que Brasil e China realmente contribuam, como prometem nesta declaração bilateral, para uma COP28 bem sucedida com o foco na implementação, em Dubai, no final deste ano. Eficácia na avaliação e identificação de lacunas de implementação do regime climático e lançamento das bases para que os países desenvolvidos liderem a redução de emissões e preencham as lacunas pendentes nos meios de implementação para os países em desenvolvimento serão as principais reivindicações dos dois países na próxima conferência das partes.
NÃO AO NEGACIONISMO CIENTÍFICO
A declaração bilateral homenageia ainda os esforços de cientistas brasileiros e chineses para participar ativamente da eleição do Escritório do 7º Relatório de Avaliação (Assessment Report - AR7) do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) e sua dedicação às avaliações científicas sobre a mudança climática global. No plano da política interna, o gesto é mais um desagravo à comunidade científica tão duramente achincalhada pelo governo anterior. Acompanha a linha adotada quando da nomeação do pesquisador e professor de Física da Universidade de São Paulo Ricardo Galvão, para presidir o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), órgão responsável por fomentar a pesquisa científica no Brasil. Ricardo Galvão, recordemos, era presidente do INPE e foi demitido por haver divulgado dados científicos sobre a evolução do desmatamento na Amazônia.
Serão os dados científicos, no caso o 6º Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (AR6), que informarão os países na apresentação de sua próxima rodada de contribuições nacionalmente determinadas (NDCs) ao Acordo de Paris em 2025, caso a caso, de acordo com as circunstâncias de cada país, na COP30. Lula, aliás, aproveitou a ocasião para obter o apoio oficial da China na candidatura brasileira para sediar essa COP em 2025.
Esforços do Brasil e da China na área climática
Após congratularem-se reciprocamente por seus próprios esforços, Brasil e China comprometem-se a aprofundar a cooperação bilateral em áreas como:
transição para uma economia global sustentável e de baixo carbono
cidades inteligentes
infraestrutura verde
desenvolvimento de indústrias verdes
energias renováveis, incluindo acesso e apoio a comunidades isoladas
mobilidade elétrica
inovação, pesquisa e desenvolvimento de tecnologias verdes
finanças e investimentos verdes
eliminação do desmatamento e da exploração madeireira ilegal global através da aplicação efetiva de suas respectivas leis de proibição de importações e exportações ilegais
cooperação no desenvolvimento e compartilhamento de tecnologias, incluindo o novo satélite CBERS 6, que permitirá um melhor monitoramento da cobertura florestal
intercâmbio de conhecimentos, melhores práticas e outras formas de cooperação para conservação e manejo sustentável das florestas, regeneração e reflorestamento de áreas degradadas.
Decisão relevante dos dois países foi o estabelecimento de um Subcomitê de Meio Ambiente e Mudança Climática sob o Comitê de Coordenação e Cooperação de Alto Nível China-Brasil (COSBAN).
O encontro, como visto, constituiu um claro divisor de águas entre a antiecologia do governo anterior e a responsabilidade ambiental do atual governo federal. Muitas questões cruciais, é verdade, foram omitidas. Por exemplo, é muito sintomática a ausência completa de referência à proteção da sócio-biodiversidade. As florestas constituem muito mais do que simples sumidouro de carbono. Ignorar por completo a proteção da fauna silvestre constitui um erro muito grave que precisa de correção.
É de se esperar que, ao empenho pela implementação das diretrizes da Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas e seus diversos protocolos internacionais, o Governo Lula lembre-se também da proteção dos animais não-humanos, como expressamente dispõe a Constituição Federal.
Igualmente, espera-se que os dois países pensem em alternativas à alimentação do povo que não dependa de uma produção de carne que, na prática, é o setor que mais pressiona a expansão de fronteiras agropecuárias. Não podemos fechar os olhos para a evidência de que a produção de soja e carne bovina do Brasil para consumo pela China, está anos luz de ser considerada ecologicamente sustentável e contribui sim, de forma expressiva, para o aquecimento global. Assim, o financiamento pelos países desenvolvidos de política climática adequada para se alcançar a pretendida meta de 1,5º C acima dos níveis pré-industriais haverá de ser em grande parte destinado à radical mudança das relações econômicas entre esses dois países.
Guilherme José Purvin de Figueiredo é Professor de Direito Ambiental, Procurador do Estado/SP Aposentado, ex-presidente do IBAP e da APRODAB. Mestre e Doutor em Direito pela USP. Autor de "Curso de Direito Ambiental", 6ª Ed. e "A Propriedade no Direito Ambiental", 4ª Ed., ambos editados pela RT.
Parabéns, Guilherme, pela análise aguda. Combater o greenwashing é essencial. "A hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude", disse La Rochefoucauld. Esse vício é nefasto.
O texto inteiro é muito importante. Leitura obrigatória.
Importante texto, Guilherme!!
Sabe-se que a perda da biodiversidade e as mudanças climáticas têm íntima relação. Foi demonstrado por investigadores de três universidades (Lancaster, Columbia Britânica e Duke) que nos quase 30 anos desde o nascimento da CDB em 1992 os países signatários mais ricos só pagaram perto da metade do que prometeram e seguem promovendo políticas econômicas que aprofundam as causas da perda de biodiversidade. Quem sabe os países do BRICS possam ser bons parceiros nesta nova jornada iniciada no Brasil em defesa do meio ambiente.
Excelente o texto, Guilherme!
O que mais desejamos é que o governo atual, em todo e qualquer assunto, dê um giro de 180 graus em relação às políticas de destruição levadas a cabo pelo bando de facínoras que assumiu o poder em 2019. Dá grande satisfação perceber que, na área ambiental, essa virada está acontecendo, embora ainda seja cedo para comemorar de modo mais efusivo. Esse pode ser um ponto alto de Lula 3, até para redimir os equívocos passados do PT nessa área (em especial, Belo Monte). Tomara que as bases de apoio do governo Lula não solapem esse salutar propósito de valorização máxima do meio ambiente.
Este texto do Guilherme, excelente, retoma um problema que não pergunta as convicções ideológicas de quem quer que seja para ocorrer - com o que a iniciativa de retomar ações relacionadas com as mudanças climáticas entre o Brasil e a China tem de ser positivamente avaliada mesmo por aqueles que ainda têm as obras de Ian Fleming e respectivas adaptações cinematográficas como único material de estudo de geopolítica -, e indica os pontos lacunosos e, mesmo contraditórios na atuação de ambos os países. Claro que os sectários que preferem sacar palavras do coldre como o Trinity (a referência é, mesmo, ao personagem burlesco do western spaghetti) vão dar as críticas como não escritas ou como postas para fins cosméticos, já…
Parabéns, caro Guilherme pela análise aprofundada!
Entendo que princípio das responsabilidades comuns porém diferenciadas após o Acordo de paris com relação às respectivas capacidades e á luz das circunstâncias de cada país. Nesse sentido, a potência que a China virou me leva a entender que deveria também participar dessa liderança na transição e mesmo no financiamento climático.
E, claro, na agenda da "democracia ambiental", ela também deve ser cobrada sobre seus processos políticos democráticos de modo geral.