-Guilherme José Purvin de Figueiredo-
I
O país pega fogo. Ecoando a ideia de que o ideograma chinês para a palavra “crise” é idêntico ao de “oportunidade”, Cândido Bracher, no caderno de mercado da Folha de S. Paulo de domingo, dia 15/9/24, defendeu a cessação do desmatamento na Amazônia com a aplicação de recursos que adviriam com a regulamentação dos mecanismos de créditos de carbono provenientes da preservação (REDD+). O título do artigo era, para dizer o mínimo, cínico, “Fogo amigo”, menosprezando a capacidade de discernimento dos ambientalistas.
Afirma o financista que não se pode combater o desmatamento da Amazônia pela aplicação de legislação ambiental e por operações de comando e controle. De acordo com as lições de Ingedore Koch, um texto deve ser conciso, coeso e coerente. A falta de coesão e de coerência no artigo de Cândido Bracher, porém, é evidente: assevera, corretamente, o autor do artigo, que os responsáveis pelo desmatamento e pelas queimadas são “os grileiros que ocupam ilegalmente áreas devolutas na região” e que “recorrem à queimada após o desmate para ‘limpar’ a área para a pecuária”. A solução para acabar com a derrubada de árvores, garimpo ilegal, grilagem e agropecuária em terras desmatadas seria “fazer com que a manutenção da floresta em pé seja capaz de gerar condições de vida para a população local”. Ora, se o desmatamento decorre de atividade ilegal, não desejada, como pretender que os criminosos se conscientizem da importância e do valor que tem uma floresta em pé? Seriam eles os beneficiários do crédito? Sim, porque os povos da floresta não são os responsáveis pelas grilagens e pelo garimpo ilegal, mas suas vítimas! Os povos da floresta sempre defenderam a preservação de seu habitat, muito antes de Ronald Coase apresentar o que ficou conhecido como o "Teorema de Coase" em seu artigo intitulado "The Problem of Social Cost", publicado em 1960 na "Journal of Law and Economics", estudo que inspirou o desenvolvimento da proposta do mercado de créditos de carbono em 1997, quando da preparação do Protocolo de Kyoto.
Conclui o autor dizendo que os ambientalistas se equivocam ao criticarem a “saída fácil” de comprar créditos de carbono em vez de investirem na redução de suas próprias emissões, com isso ferindo “de morte a viabilidade da proteção de florestas tropicais, gerando efeito inverso ao desejado, posto que não há fronteiras na atmosfera. É o chamado ‘fogo amigo’”. É natural, com esse rebaixamento da crítica ambientalista, Bracher tenta difundir a ideia de que estamos do mesmo lado.
A ideia de que o ideograma chinês para "crise" (危机) é composto pelos caracteres de "perigo" (危) e "oportunidade" (机) é um equívoco comum. O caractere (危) realmente significa "perigo" ou "ameaça". No entanto, o segundo caractere (机), embora em alguns contextos possa significar "oportunidade", refere-se principalmente a "momento crucial", "ponto decisivo" ou "mudança". Portanto, a palavra "crise" em chinês significa mais algo como um momento de perigo e mudança, não de oportunidade embutida. Trata-se de retórica própria de discursos motivacionais, sem embasamento linguístico. Os ambientalistas não estão desfechando fogo amigo, eles sabem muito bem a quem beneficia a tese da regulamentação do REDD+ na Amazônia. Há perigo, há ameaça e o momento é crucial - estamos diante do turning point, da iminente irreversibilidade. Por isso, acompanho a opinião do prof. José Rubens Morato Leite (UFSC): “Fiscalização, monitoramento e multa para valer”.
Os guardiões da floresta são os povos originários. Eles são vítimas da grilagem e da mineração clandestina, que contamina o ar, a água e o solo, trazendo consigo o rastro da destruição. Cogitar que o povo Yanomami, por exemplo, lucraria com o REDD+ só pode ser fruto de uma completa ignorância antropológica ou insidiosa defesa de um ponto de vista que só trará lucro imediato para o capitalismo internacional. Com a palavra Davi Kopenawa:
"Os brancos talvez pensem que pararíamos de defender nossas florestas caso nos dessem montanhas de suas mercadorias. Estão enganados. Desejar suas coisas tanto quanto eles só serviria para emaranhar nosso pensamento. Perderíamos nossas próprias palavras e isso nos levaria à morte. Foi o que sempre ocorreu, desde que nossos antigos cobiçaram as suas ferramentas pela primeira vez, há muito tempo. Essa é a verdade. Recusamo-nos a deixar que destruam nossa floresta porque foi Omama que nos fez vir à existência. Queremos apenas continuar vivendo nela do nosso jeito, como fizeram nossos ancestrais antes de nós. Não queremos que ela morra, coberta de feridas e de dejetos dos brancos. Ficamos com raiva quando eles queimam árvores, rasgam a terra e sujam os rios. Ficamos com raiva quando nossas mulheres, filhos e idosos morrem sem parar de fumaça de epidemia. Não somos inimigos dos brancos. Mas não queremos que venham trabalhar em nossa floresta porque não têm como compensar o valor do que aqui destroem. É o que penso." (A Queda do Céu - Palavras de um xamã yanomami. Davi Kopenawa e Bruce Albert. São Paulo : Cia. das Letras, 2015, p.354)
II
Nesse diapasão, lembro da audiência de abertura da tentativa de “conciliação” no STF. Ali, a manifestação da deputada Federal Célia Xakriabá, do PSOL/MG, não chamou a atenção da mídia. Afinal, aquela parlamentar não tinha direito a voto na comissão e sua intervenção, assim, só poderia ser recebida como manifestação de oportunismo exibicionista – afinal, era uma deputada e deputados fazem exatamente isso: havendo público, chamados à mesa apenas por dever de ofício, pedem a palavra e roubam o tempo de fala do palestrante principal em congressos e simpósios.
Célia Xakriabá, porém, fez uma inusitada manifestação metalinguística: falou da (ir)relevância de sua fala. Primeiro, entoou um canto indígena, deixando bastante claro que estavam ali seres humanos com cosmogonias radicalmente opostas. O canto a exorcizava dos símbolos oficiais da pátria criada por Dom Manuel – o Venturoso, Dom João VI – o rei fujão; Dom Pedro I – o autoproclamado imperador que rapidamente renunciou em nome do filho e assumiu o trono de Portugal; ou, claro, pelos militares de 1889, em defesa dos interesses dos fazendeiros de 1888.
Ela então se apresentou como suplente de deputada e, por isso, sem direito a voto na comissão. A fala é conduzida num tom entre o amargamente irônico e o humorístico para tratar de uma tragédia. Os brancos na plenária da sessão deveriam nesse momento estampar no rosto uma expressão de estranheza: afinal, onde está a piada, se ela não teve o número de votos necessário para ser eleita como titular? Ela então explica que, no Congresso Nacional, é suplente nas comissões de ruralistas – só que, ali, no STF, ruralistas estão querendo discutir direitos fundamentais dos povos indígenas. Ou seja, ela seria então uma suplente do que, naquele momento? Dos ruralistas ali amplamente representados? Evidente que não! Ela está presente como parte interessada.
No mais, Célia observou que, numa comissão que vai tratar de direitos Indígenas, ela, Indígena, era mais uma vez suplente. E desabafou: “É a mesma coisa de dizer que sou suplente de Pedro Álvares Cabral”.
O público riu: não dá para naturalizar tão absurda desproporcionalidade na representação parlamentar brasileira. Povos que há 524 anos vêm sendo assassinados pelos colonizadores portugueses não terão jamais condições de defender seus direitos neste sistema. Para haver proporcionalidade, cada indígena eleito deveria somar o número de votos recebidos pelo de ancestrais desses sobreviventes, o que, imagino, elevaria o número de deputados em umas 20 vezes.
Temo que os risos que arrancou da plateia decorreram da impressão de que ela acabava de criar um nonsense cômico surrealista, que há trinta anos era conhecido como “besteirol”, tão arraigado está o racismo estrutural e a insensibilidade ante a violência sofrida por indígenas e afrodescendentes no Brasil.
Prefiro, porém, acreditar que a maioria entendeu aquela declaração como uma genial sacada metafórica. A tradução seria: “vocês, que estão do outro lado, são apenas isso, figuras irrelevantes para a história do continente sul-americano, suplentes do poder econômico (mercantilismo/capitalismo), simbolicamente representado pelo comandante da frota de treze naus que desembarcou em 22 de abril de 1500 na terra dos Tupiniquins, Pedro Álvares Cabral. Vocês, porém, não são os titulares e, por isso, não têm tampouco direito a voto, votam sim por procuração – por exemplo, da ala ‘verde’ (da cor do dólar) dos empresários que pretendem levar o REDD+ para as nossas fronteiras, quando não dos representantes do ogronegócio”.
Uma mesa de negociação, se fosse pra valer, teria que ser em território neutro e não no Supremo Tribunal Federal; com paridade de armas; e, evidentemente, com os titulares – representantes das nações indígenas dos territórios hoje chamados de Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Guiana, Guiana Francesa (França), Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela, e dos manda-chuvas da Economia dos países que importam soja e minérios extraídos de território indígena -- dos quais a imensa maioria de nossos congressistas são meros prepostos. Quem sabe, junto à Starlink, à Microsoft, à TüvSüd, à Google, à Amazon, à Tesla, à Berkshire Hathaway, à Meta e à Tencent Holdings, alguma coisa possa ser decidida – por exemplo, o respeito à própria decisão do STF pela inconstitucionalidade da tese do marco temporal.
Guilherme José Purvin de Figueiredo, Doutor em Direito Ambiental pela USP é Pós-Doutorando no Depto. de Geografia da FFLCH-USP, fundou a Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil, tendo sido seu primeiro coordenador geral. Atualmente é coordenador internacional do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública e da APRODAB.
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