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A força da história no realismo mágico

Atualizado: há 14 horas

-MARCIA SEMER-


A arte sempre promove o conhecimento ou o reconhecimento de uma forma que outros saberes nem sempre são capazes de tocar com a mesma intensidade ou profundidade.


Como expressão artística, a literatura é um instrumento fantástico, que nos transporta pra outros mundos, pra outros tempos e para mundos e tempos irrealizáveis em que o insólito faz todo sentido.


O realismo mágico situa-se exatamente neste terreno, de uma corrente literária que navega nessas águas insólitas, a fim de nos mostrar, com tintas marcantes, a força da história.


Quando falamos em realismo mágico ou fantástico via de regra Gabriel Garcia Marques e seu Cem Anos de Solidão nos vem à cabeça. A lembrança de Gabo e dessa obra maestra da literatura latina é uma referência natural, pertinente, mas que não esgota o conjunto de obras do gênero, algumas delas produzidas antes mesmo de Garcia Marques pensar em escrever Cien Años de Soledad.


Recentemente tive a felicidade de ler duas obras-primas dessa vertente literária, obras de referência da literatura mundial que por meio do realismo fantástico nos apresentam verdadeiras análises sociológicas e antropológicas de suas respectivas sociedades, ademais da crítica política.


Nossa primeira parada será sobre a obra de Juan Rulfo, escritor mexicano, autor de Pedro Páramo, seu único romance. 




Pedro Páramo é em livro enxuto, de menos de 200 páginas que, no entanto, te descortina a sociedade mexicana contemporânea à Revolução Mexicana de 1911, com sua elite dominante extrativista que, antes também do célebre “Il Gatopardo”, revela o “modus operandi” dessa mesma elite para, em havendo alguma mudança nos ventos políticos do país, as coisas permanecerem como sempre estiveram.


Escrito entre 1953 e 1954, a obra foi publicada em 1955 e narra a viagem de Juan Preciado à cidade de Comala para, como prometera à mãe morta, conhecer seu pai, o rico latifundiário Pedro Páramo.


Pedro Páramo é uma obra maiúscula. Apresenta-nos, pela magia de vozes sobrepostas de personagens vivos e mortos que interagem durante toda narrativa, o transcorrer da história mexicana do começo do século XX, o modo de vida dominante na época, o clima da região, a vegetação, a economia rural centrada na criação de gado e na plantação, a condição das mulheres, a influência da igreja, o início e desenvolver da Revolução Mexicana, e a onipresença de Pedro Páramo como fiel de tudo e de todos.


Não é livro que se esgota em uma única leitura. Eu li duas vezes seguidas, munida de caneta na mão na segunda tentativa, exitosa, diga-se.


Pedro Páramo é em tudo precursor. Sua cidade fictícia é Comala, conduz a história a partir do núcleo familiar de Pedro Páramo, e o trânsito entre vivos e mortos é a magia aplicada à descrição da realidade. Impossível ler e não ter a certeza de que Garcia Marques bebeu dessa fonte ao projetar Macondo e contar a saga dos Buendía. Gabo, aliás, era admirador declarado de Juan Rulfo e falava com gosto sobre isso.


Juan Rulfo, autor desse único romance, e outros contos, é o escritor mexicano mais cultuado mundo afora. E com inequívoca razão.


A próxima incursão na literatura de realismo fantástico também tem sítio na primeira metade do século XX, mas bem longe das paragens latinas, da língua hispânica e do clima caliente. É na água caudalosa da literatura russa que o mergulho em Mikhail Bulgakov nos arremessa de cara sobre o desconcertante O Mestre e Margarida, um romance denúncia, mas que vai muito além disso, acerca da liberdade de expressão (ou, mais precisamente, de sua falta) durante o período stalinista.


Considerado O Fausto da literatura russa, O Mestre e Margarida é dramático, engraçado, irônico, sarcástico, alegórico, hiperbólico. O núcleo condutor do romance tem centro nos escritores e artistas, muitos cooptados ou calados pelo regime, a depender de sua adesão.


O elemento perturbador da cena é o Diabo, Woland, mesmo nome dado por Goethe ao Satanás em Fausto. Woland e seus assessores, esse núcleo maligno (será?), todos personagens exóticos, mas sagazes, começam seus serviços cortando, em um acidente de bonde, a cabeça do editor literário Berlioz, que encomendara ao poeta Bezdomy um poema antirreligioso. Insatisfeito com o resultado da encomenda, Berlioz, na cena de abertura do romance, explica ao poeta que o objetivo do trabalho não é dizer que Jesus é mal, mas que ele não existe, razão por que o poema deve ser refeito. Nesse momento entra em cena Woland que ao descrever antecipadamente a morte de Berlioz, que aconteceria minutos depois, desconcerta Bezdomy, dando início ao enredo mirabolante, que tem na crítica um contundente elemento de realidade.


A sociedade de escritores, o restaurante em Moscou onde apenas seus associados comiam refeições baratas e com produtos a que as pessoas comuns não tinham acesso, os apartamentos compartilhados por famílias diferentes, o teatro de variedades, a proibição de porte moeda estrangeira. Muitas são as referências na obra de lugares e acontecimentos que de fato existiram como descritos naquela quadra da vida russa e que dão contexto histórico para que o alegórico faça todo sentido.

  

Em o Mestre e Margarida, Pilatos e a morte de Jesus compõem alguns capítulos, magníficos, diga-se, da alegoria, sendo Pilatos uma referência, a meu sentir benevolente, a despeito de caricata, de Stalin, em sua consciência, e culpa excruciante, da maldade praticada contra inocentes.


Deus e o diabo, como não podia deixar de ser, em cena curta e pontual, decidem o destino dos amantes Mestre (o escritor) e Margarida (a leitora apaixonada). Mas aí melhor deixar o desfecho da trama pra depois, e não tirar o prazer de quem resolver incursionar pela obra.


Em Pedro Páramo e em O Mestre e Margarida a alegoria é instrumento de apresentação da realidade, de reflexão sobre a sociedade e de crítica política.


O realismo fantástico traz para o romance um conteúdo histórico, que a partir da fantasia, da ironia, do humor até, mas também do drama, tudo junto e misturado, se apresenta sob um olhar questionador, que nada tem de panfletário.


Lendo esses dois livros recentemente, redescobri que sou fã do gênero. E recomendo vivamente.

 

 

. Rulfo, Juan. Pedro Páramo, Rio de Janeiro, 2021, 5ª. edição, Editora José Olympio.


. Bulgakov, Mikhail. O Mestre e Margarida. São Paulo, 2023, 2ª. edição, 3ª. reimpressão, Editora 34.


 

Márcia Maria Barreta Fernandes Semer - Advogada, Procuradora do Estado de São Paulo aposentada,Mestre em Direito Administrativo e Doutora em Direito do Estado (USP). Membro associada do IBAP





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