- Ibraim Rocha -
No dia 12 de janeiro de 2025, Belém comemorou os 409 anos da colonização portuguesa, iniciada em 1616. Antes disso, a cidade era uma aldeia indígena Tupinambá, denominada Mairi. Esta aldeia servia como entreposto comercial de produtos da floresta, localizada na desembocadura dos rios Guamá, Acará e Moju, formadores da Baía do Guajará. Nas margens desta baía encontra-se o atual complexo do Ver-o-Peso e a Feira do Açaí, onde é desembarcado o fruto nativo das ilhas que circundam a capital. O açaí é essencial para a base alimentar paraense.
Essa origem histórica revela como a natureza amazônica moldou hábitos alimentares profundamente arraigados na região. O açaizeiro (Euterpe oleracea Mart.), nativo da Amazônia brasileira, tem no Estado do Pará o principal centro de dispersão natural dessa palmácea. Populações espontâneas da planta também são encontradas nos estados do Amapá, Maranhão, Mato Grosso e Tocantins, além de países da América do Sul, como Venezuela, Colômbia, Equador, Suriname e Guiana, e da América Central, como o Panamá. Entretanto, é na região do estuário do rio Amazonas que se concentram as maiores e mais densas populações naturais dessa palmeira, adaptada às condições de elevada temperatura, precipitação pluviométrica e umidade relativa do ar.
A abundância do açaí nas ilhas próximas de Belém permitiu a continuidade de seu consumo como alimento essencial na dieta do povo paraense, tanto na região metropolitana quanto no estuário do nordeste paraense, sem similaridade de consumo em outras regiões, mesmo da Amazônia. Dados de 2006 apontavam que, do total colhido de açaí, cerca de 20% era consumido pelas famílias no local de produção no Estado do Pará. Além disso, 80% da produção de frutos tinha origem no extrativismo puro, enquanto os 20% restantes eram provenientes de açaizais manejados e cultivados em várzea e terra firme. Já em 2022, o Pará manteve a posição de liderança, com a produção de 1,7 milhão de toneladas, representando 90,4% da produção nacional. Diferentemente do passado recente, o açaí cultivado agora representa 87,3% do total.
O que se pode perceber é que, apesar do aumento da produção e do crescimento exponencial do açaí cultivado, este não alterou o hábito paraense de consumir açaí com peixe frito, camarão ou carnes salgadas, o que permanece como forma de resistência cultural. No entanto, o produto tem se voltado cada vez mais para exportação, elevando constantemente o preço. O açaí, que antes era exemplo de alimento barato e acessível, agora contradiz a percepção comum de que, há cerca de 20 anos, ele era o salvador da fome do povo.
É importante destacar que o consumo na forma tradicional, dada a perecibilidade dos frutos do açaí, exige que sejam processados no prazo máximo de 24 horas após a colheita, caso sejam mantidos em temperatura ambiente. Essa condição demanda rapidez na retirada dos frutos das áreas de produção, no transporte e na comercialização, para evitar perda excessiva de água. A perda hídrica pode dificultar o despolpamento, reduzir o rendimento da bebida e alterar a coloração, prejudicando o padrão que confere a famosa "boca roxa".
Dadas as características de perecibilidade do açaí, não é surpreendente que o produto exportado tenha sido diluído e processado com conservantes e outros aditivos que nem de perto mantêm as características do consumo diário de um litro de açaí do tipo médio. Esse consumo tradicional contém 12,5% de matéria seca, incluindo 65,8 g de lipídios, o que corresponde a 66% da ingestão diária requerida; 31,5 g de fibras alimentares totais, equivalentes a 90% das recomendações diárias; e 12,6 g de proteínas, que correspondem de 25% a 30% da necessidade nutricional diária.
Esse quadro do açaí revela como um alimento que, em seu uso tradicional, tem importante papel em assegurar o direito humano à alimentação adequada (DHAA), contraditoriamente, apesar da crescente produção, coloca esse direito em risco. Isso porque a produção não visa garantir o acesso aos alimentos, especialmente aos pobres, promovendo a segurança alimentar em alinhamento com o conceito de soberania alimentar e o costume alimentar da região. Pelo contrário, a produção especializada vai transformando o açaí em uma commoditie, dentro de um modelo de incentivos produtivos voltado para exportação, negligenciando seu uso como base de um direito humano.
Esse cenário nos alerta que, ainda que seja positiva economicamente a diversidade de usos do açaí, sua produção não pode ser incentivada de forma a prejudicar o direito alimentar da comunidade. O aumento desproporcional do preço e a redução de sua oferta à população contradizem o aumento da produção e evidenciam a necessidade de políticas públicas adequadas.
A batalha atual é prevenir modificações genéticas que excluam o acesso às sementes do açaí, evitar formas de plantio que criem dependência ao uso de agrotóxicos, e incentivar a preservação ambiental dos açaizais nativos com métodos de agroecologia, inclusive nas áreas cultivadas. Por fim, é essencial diversificar os incentivos fiscais e financeiros com prioridade para garantir uma alimentação identitária, diversa e saudável, em consonância com a cultura alimentar do povo paraense.
O caso do açaí nos mostra que é indispensável pautar, nos debates ambientais, a garantia de respeito à soberania alimentar. Essa soberania é essencial para a diversidade biológica e social e deve ser um ponto central na COP 30, a se realizar em Belém do Pará, com toda a autoridade de vivência local.
Bibliografia
Nogueira, Oscar Lameira. Açaí: manejo, produção e processamento. / Oscar Lameira Nogueira ... [et aI.]. - Fortaleza: Instituto Frutal, 2006. 147 p.
FAPESPA. Nota Técnica Conjuntura Econômica do Açaí Paraense 2024. Belém: FUNDAÇÃO AMAZÔNIA DE AMPARO A ESTUDOS E PESQUISAS.
Rocha, Ibraim. Principio da Função Social Autônoma da Propriedade Pública: Caracterização da Posse de Terras Públicas e sua Defesa. In: Bruno Soeiro; Francisco Nicolau Domingos; Frederico Antônio Lima de Oliveira; Iracema de Lourdes Teixeira Vieira. (Org.). Direito Público Contemporâneo. 1ed.Londrina: Thoth, 2024, v. 4, p. 207-225
Ibraim Rocha é Procurador do Estado do Pará, Mestre em Direito Processual Civil e Doutor em Direitos Humanos e Meio Ambiente. Membro do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública e colunista da Revista Pub Diálogos Interdisciplinares. Sua coluna é publicada sempre no dia 20 de cada mês.
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