- Celso Augusto Coccaro Filho -
“M, O filho do Século”, é a biografia romanceada de Benito Mussolini, escrita por Antonio Scurati, Professor de Literatura Contemporânea da Universidade de Milão, e relata os anos iniciais do fascismo: a formação dos fasci italiani di combattimento, a criação do Partido Nacional Fascista, a tomada do poder na Marcha de Roma, a consolidação como partido único e a supressão dos meios democráticos.
Ao contemplar o número crescente de asseclas e simpatizantes, o Duce teria refletido, surpreso e desconfiado do próprio sucesso:
“Mas quem, de fato, são estas pessoas? Onde estavam enfurnadas até ontem?”
A mesmíssima indagação pode ser dirigida aos asseclas e mentores do atual mandatário Federal. Ele se sabe de onde veio e como veio.
Mas o mistério cerca o surgimento dos lacaios e das mentes tormentosas que o conduzem.
Onde se ocultavam os armamentistas, terraplanistas, olavistas, anticulturais, complexados, ressentidos e sociopatas? Como se deu o afloramento à superfície destes seres das profundezas?
Não se cogita defender o surgimento da claque fascista na Itália de Mussolini, mas não se pode negar que o fenômeno era explicável, às luzes da política, da economia, das ciências sociais e da psicologia.
O contingente inicial fascista foram os soldados desmobilizados após o término da Primeira Guerra Mundial.
O conflito cobrou dos jovens italianos um preço elevado. Foram 600 mil mortos, num total de 5 milhões de convocados. Baixas superiores a dez por cento são muito elevadas naquele tipo de conflito, desenvolvido entre infantarias nos picos elevados das Dolomitas, na fronteira ítalo-austríaca.
Apenas na “Ofensiva Asiago” morreram 250.000 soldados, em ataques frontais às trincheiras austro-húngaras.
O Marechal Luigi Cadorna comandava o exército italiano sem apreço pela vida dos seus soldados, que eram lançados em campo aberto às metralhadoras inimigas.
Foi ressuscitada a dizimação das legiões romanas; se a relutância na batalha era de um batalhão completo, escolhia-se para o fuzilamento um em cada dez soldados, aleatoriamente.
O filme de Stanley Kubrick, “Glória Feita de Sangue”, narra um episódio dessa natureza, envolvendo o exército francês. O ataque sem sentido, fadado ao insucesso, mal preparado e mal concebido, executado para satisfazer uma ordem ou uma pretensão de autoridade. A corte marcial forjada, de resultado antecipado, para os soldados relutantes; a execução pelo fuzilamento como forma de coação dos demais; a hierarquia se impondo pela força e pelo terror.
Uma obra menos conhecida, “Uomini Contro”, de Francesco Rosi, revela o tormento superlativo a que foram submetidos os soldados italianos, sempre em inferioridade de armamentos e de números. Carnificina; a qualquer desvio, a menor falha, seguia-se a corte marcial e a execução. Os soldados que se adiantavam para romper os arames farpados e defensas da trincheira inimiga se vestiam com uma armadura, a infame “Corazze Farina”, que lhes dava um tosco aspecto de cruzados medievais, e que, como era de se esperar, não evitava a morte pelas rajadas das metralhadoras.
Havia um grupo de elite, com a acepção que este termo possa ter num conflito armado, que se tornou o núcleo do futuro fasci di combattimento, que eram os “arditi”. Este batalhão de rapazes selecionados pelo porte físico avantajado e pelo destemor se lançava – literalmente, pulava – nas trincheiras inimigas apenas com armas de mão, especialmente a mortal adaga sardenha resolza. Estas tropas chegavam a ter baixas superiores a trinta por cento, nos seus ataques cruentos.
A violência deste grupo era cultivada, prestigiada e estimulada pelo Estado Italiano, que imediatamente o desmobilizou e ignorou, tão logo terminando o conflito.
A ociosidade do contingente militar é um fato perigoso, que exige readaptação social e psicológica.
O Estado italiano virou as costas aos soldados; não lhes deu nenhum auxílio. A situação econômica do País, devastado pelo conflito, não ajudou. Não houve a readaptação social e nem a inserção econômica, e o grupo não se dispersou. Continuaram unidos e constituíram os fasci di combattimento, força paramilitar que, a princípio anárquica, foi se politizando e organizando, tornando-se o núcleo do futuro partido fascista.
Era este grupo que vandalizava as sociedades cooperativas rurais, queimava aldeias governadas pelos socialistas, explodia sindicatos e jornais, espancava os adversários políticos, ações que culminaram com o assassinato do deputado Giacomo Matteotti (fato retratado em outra magnífica obra cinematográfica, “Il Delitto Matteotti”, dirigido por Florestano Vancini).
Violência, agressividade, frustração. Falta de reconhecimento, ausência de acolhimento e de afetividade.
Eis aí o adubo do fascismo.
O ressentimento é uma mola propulsora política. Não pode ser subestimado.
O conceito de Nietzsche (Genealogia da Moral) leva o ressentimento a veredas filosóficas complexas; a definição aqui adotada é bem mais simples: “ódio impotente contra aquilo que não se pode ser ou não se pode ter” (de Nicola Abbagnano).
Os milhões de soldados italianos, sobressaltando-se os arditi, nutriam elevadas expectativas no seu retorno à Pátria e à paz; ficaram distantes da realização pessoal, psíquica e material, e grande parte deles permaneceu atolado naquele mundo violento, hierárquico, no qual a dissensão moral e ideológica se materializava no soldado inimigo a ser abatido.
A “inteligência e a massa de manobra”, sujeito e objeto, se galvanizaram na constituição do fascismo.
Este grupo violento e arruaceiro não chegaria ao Poder, pelas vias normais.
Outros fatores, políticos e econômicos, abriram-lhe um vão.
Os anos de 1919 e 1920 foram conhecidos na Itália como o “biênio vermelho”.
Os partidos socialistas conseguiram ampla maioria nas eleições (mais de 80% dos votos).
Este fato político atormentou parcela da elite econômica da Itália.
Muito próximo, ao Norte, havia sido criada a República Socialista da Baviera.
Um pouco mais ao Leste, nascia a República Soviética Húngara, de Bela Kun.
Na Rússia, o Exército Vermelho de Trotsky vencia o Movimento Branco batalha após batalha, na Guerra Civil que se seguiu à Revolução de 1917.
A Internacional Comunista era realidade tangível.
O temor de uma revolução soviética italiana era reforçado pelos movimentos pró-coletivização nos campos, e pela tomada de poder pelos operários das principais indústrias do País, que passaram a ter uma gestão compartilhada.
O fato fez com que setores econômicos se unissem e financiassem o fascismo, que se organizava como milícia armada, e se opunha aos movimentos socialistas com o uso da força.
A Monarquia e a Igreja, pelo Partido Católico, potenciais vítimas de uma revolução soviética, também reforçaram o apoio ao fascismo.
A polarização de forças, num cenário tenso de pós-guerra, fez surgir naturalmente agrupamentos com comportamento radical e violento, alheios às rédeas da cultura e do saber.
Já no Brasil de 2020 não há sustentação econômica, social e psicológica para a germinação dos mesmos tipos. O terreno não é fértil. A cria é artificial.
A crise econômica da presente década não é novidade para a população acostumada com problemas econômicos pungentes e cíclicos: mega inflação, planos econômicos fracassados, confisco de capital, seguidas e expressivas desvalorizações da moeda, trocas sucessivas da mesma moeda, com subtração dos incômodos zeros a mais, dívida externa, sujeição ao FMI e calotes internos contumazes. Nada de novo, e a tez enrugada de parte dos asseclas demonstra que não são baby boomers mimados pela efêmera bonança das “commodities”.
As bandeirolas da CUT e do MST, não constituem uma “ameaça vermelha” real e identificável; a multiplicidade de interesses e ideologias é, aliás, sintoma de uma democracia saudável.
O cenário político da redemocratização é de instabilidade previsível, com o “Centrão” parasitando chapas vencedoras até deixá-las exangues e abandoná-las ao impeachment ou ao fracasso eleitoral.
Uma ou outra divergência quanto à política de costumes poderia justificar alguma insegurança imatura e o voto impensado, esta manifestação lacônica e gesto irreversível, mas não a teratogênese.
Não temos soldados frustrados ou abandonados afetivamente. O exército brasileiro não costuma ser dado a abusos ou desvios nos tempos modernos, e tem cumprido o seu papel constitucional.
A indústria e o sistema financeiro no Brasil não foram pressionados nem perseguidos. Alega-se desde sempre que há tributos elevados e muita burocracia, com os quais se convive desde sempre com lucros, em geral e salvo exceções, desde sempre elevados. Perde-se na memória alguma greve que tenha parado as atividades do setor privado, salvo os prováveis lockouts de caminhoneiros e dos transportes públicos. As mazelas que afligem o empresariado costumam ser criadas pelo próprio sistema capitalista. O desejo de progresso e melhoria econômica não costuma gerar desviados sociais.
Enfim, talvez os asseclas radicalizados tenham brotado dos jogos da seleção brasileira massacrada pela Alemanha em 2014, hipótese reforçada pela cor das suas camisas e das bandeiras com a qual agridem enfermeiros e jornalistas e atiram com suas armas em prédios de bairros residenciais em São Paulo. Os sonoros palavrões e o comportamento socialmente deplorável da parte mais sofrida daquela torcida são fortes evidências.
Mas esta tese é imperfeita. Não explica os terraplanistas. Estes costumam ser pacíficos, feição que não caracteriza os olavistas, selvagemente multiplicados no Ministério da Educação e na Cultura.
A resposta está neles mesmos. Basta um pouco de sensibilidade e percepção. A falta de explicação plausível remete à explicação implausível. O bom detetive conclui sua investigação quando para de olhar para o alto, para a lógica e para a razão, e passa a aceitar o imponderável. Sempre fora da ciência.
A explicação está no passado, está em Aristóteles.
Estes seres vivos foram gerados espontaneamente. A geração espontânea é designada pela palavra abiogênese, ou “formação de organismo vivo com base em matéria não viva” (Aurélio, 2ª Ed. = do grego a + bio + genesis, “origem não biológica”).
Solucionado o mistério fora da ciência, da maneira que admiram e estimulam os vilões e asseclas do Poder, agora resta identificar a matéria bruta original, fato que poderá estimular a imaginação e trazer muita diversão.
Celso Augusto Coccaro Filho, sócio fundador do IBAP, é escritor e procurador do município de São Paulo.
O artigo traduz uma ótima análise comparativa entre o surgimento do fascismo na Itália e o crescimento do movimento deste gênero no Brasil. Parabéns, Celso !!