-IBRAIM ROCHA-
No dia 27 de janeiro de 2020, publiquei na Revista PUB o artigo intitulado "Utopia no Século XXI ?" onde, preocupado com os dados de destruição ambiental, apresentei uma breve reflexão sobre as remotas possibilidades de se construir um novo destino para a humanidade, ainda que movido pelo espirito de mudança que nos move no início de cada ciclo anual.
Naquele momento ainda não se vivia a pandemia do Sars-Covid 19, que não era preocupação da humanidade, e ainda vivíamos como se o amanhã só dependesse das nossas resoluções de fim de ano, entretanto, por já estar a considerar o olhar da ciência sobre o ambiente afirmava com muita convicção a dificuldade de se construir uma nova utopia, ainda que ao final apontasse um caminho a ser construído com os povos da floresta.
Esta semana se inicia no Brasil sob os auspícios da conquista da ciência que no início do ano 2021, apresenta a esperança de retomada de nossa vida cotidiana com a possibilidade de imunização, com a vacinação em 17 de Janeiro da enfermeira Mônica Calazans, de 54 anos, mulher negra , primeira pessoa a ser vacinada contra a Covid-19 no Brasil, o que por si só já é uma grande conquista, mas onde se destacam as suas palavras de incentivo a confiar na ciência, afirmando “Que a população acredite na vacina. Estou falando agora como mulher, brasileira, mulher negra, que acreditem na vacina”. O que não pode ser olhado sem estranhamento.
Novamente, no início deste novo ciclo anual, a reflexão que se impõe é indagar como se colocar a esperança de um novo futuro sem olhar a ciência apenas pelo seu resultado imediato, mas como uma guia para unificar os nossos caminhos para um destino comum da humanidade em que se retome a solidariedade, o que passa até mesmo pelo resgate do conceito de ciência.
Com efeito, para entender o conceito de ciência é preciso retornar a noção de cartesiana de COGITO, ERGO SUM ( PENSO, LOGO EXISTO) apresentado no Discurso do Método, escrito por René Descartes, em 1637, a quase 4 séculos, onde se firma a ideia que é necessário estabelecer e seguir os passos que a razão deve percorrer para encontrar a verdade e até mesmo quando chega a DÚVIDA HIPERBÓLICA, de que poderia existir um gênio maligno, que nos faria crer no que não existe, isto não é nada mais que um teste para demonstrar como a dúvida hiperbólica leva à certeza indubitável de que o ser mesmo existe enquanto coisa que pensa.
Com isto se pode afirmar que neste momento se consolidou a ideia de que a razão deve ser o guia para retirar a humanidade da incerteza e do ceticismo e esta deve ser o fundamento para um diálogo racional cujo fundamento é a ciência, como linguagem que unifica o ser da humanidade.
Quem não conhece a expressão matemática E: MC² mais que originariamente era M: E/C² e que resumidamente representam que toda a massa existente no universo é uma forma de energia, ou seja, a massa pode se manifestar de forma mais ou menos extensa sem deixar de ser energia. Esta teoria elaborada por Einstein e que pode ser lida até mesmo como uma linguagem religiosa, é o mais puro resultado da razão, então não se pode dizer que Einstein aproxima a religião da razão, mas apenas que ele apresenta uma explicação racional para conceitos usados pela religião, pois qualquer conclusão na ciência é sempre e tão somente um paradigma, um modelo que adotamos para orientar o agir racional. A ciência não trabalha com dogmas, mas com princípios que orientam a razão a partir do debate racional perante os pares da ciência.
Assim, fica claro que o fundamental na ciência é que o modelo adotado possa gerar uma resposta racional e que possa ser aceita pela comunidade cientifica para afastar incertezas sobre as respostas que um problema demanda, ainda que em campos limitados, e, se surgem novos problemas, ela demanda novos princípios que a expliquem, a ciência não pode trabalhar com a incerteza, embora saiba o limite da certeza.
Quando se retoma as ideias de Descartes e Einstein para se refletir o pensar cientifico, permite-se perceber que o fundamental para que uma explicação teórica seja aceita pela comunidade científica, mesmo que independente da sua prova experimental, não quebre a segurança da ciência padrão a partir da observação da natureza, mas é possível porque a comunidade cientifica reconhece a aplicação prática dos princípios que a balizam, segundo a ideia essencial de permitir encontrar a verdade.
Seja um modelo matemático puramente teórico, seja a pesquisa para um vírus, ou uma teoria sobre o fenômeno jurídico, somente podem ser considerados científicos desde que se pautem em princípios reconhecidos como válidos pela comunidade de cientistas, logo não basta fazer a difusão de um meme que algo se torna realidade, este é o diferencial da massificação de uma teoria cientifica, e a massificação de um conceito errado, ou, na palavra da moda, uma fake news.
Isto permite acabar com o mito de que é possível uma verdade particular, isto não passa de dogma e crença. A possibilidade de uma verdade ser particular, está restrita a sua aplicação ao campo personalíssimo e aplicável ao exercício da liberdade individual, mas como tal ela não pode fundar o agir ou conduzir comunitário, este somente se pode basear na ciência, campo livre e racional historicamente construído e por isso, legítimo.
Basta lembrar que mesmo cristo precisou de 12 apóstolos para pregar, mas somente 2 escreveram os evangelhos (Mateus e João), pois Marcos e Lucas, embora também tenham escrito livros da bíblia, não foram apóstolos mas colaboradores de Pedro e São Paulo, em vez de todos os apóstolos contarem a história de Cristo para induzir a razão na sua crença, foram os mais qualificados que cumpriram a tarefa, ou seja, foi adotado um método e escrito pelos mais qualificados.
E foi este pensar científico que permitiu a construção histórica e racional da necessidade de enfrentar a crise ambiental, que se pode localizar na Conferência das Nações Unidas de Estocolmo em 1972, aprofundada com o relatório Brundtland, intitulado Nosso Futuro Comum (Our Common Future), publicado em 1987, onde se encontra a definição do desenvolvimento sustentável como:
"O desenvolvimento que satisfaz as necessidade presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades”
O Relatório, elaborado pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, já criticava o modelo de desenvolvimento adotado pelos países industrializados e reproduzido pelas nações em desenvolvimento, fundado no uso excessivo dos recursos naturais sem se preocupar com a capacidade de suporte dos ecossistemas, tendo como consequência a incompatibilidade entre desenvolvimento sustentável e os padrões de produção e consumo vigentes. Estes estudos foram aprofundados e, em 1988, a ONU apoiou a criação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas - IPCC (The Intergovernamental Panel on Climate Chage) sob responsabilidade da Organização Meteorológica Mundial, em cooperação com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente - PNUMA, que tem o respeito e o apoio de muitas outras organizações científicas do mundo. Assim, o IPCC recolhe e organiza os dados de milhares de pesquisadores no mundo todo, portanto, funda os seu dados em pesquisas independentes num processo cumulativo de dados, que vem sendo organizados, apresentando cinco relatórios, estando previsto para ser publicado em 2022 o 6º Relatório.
Os fundamentos de constatação da crise climática então alicerçados em dados científicos que demonstram que é preciso mudar radicalmente nossa visão das relações humanidade-meio ambiente, havendo consenso que existe limite mínimo para o bem-estar da sociedade, conectado a um limite máximo para a utilização dos recursos naturais, necessários à sua conservação. E se não realizarmos as mudanças o resultado será os impactos projetados de aumento do aquecimento global, Mudanças Climáticas Projetadas, Impactos Potenciais e Riscos Associados, que se tornam uma questão de tempo, e, por isso, o Relatório do IPCC não expõe medidas de resolução dos problemas do aquecimento global, mas sim ESTRATÉGIAS DE MITIGAÇÃO que, em diferentes formas, podem alcançar as reduções de emissões líquidas que seriam necessárias para seguir uma trajetória que limita o aquecimento global a 1,5°C, sem overshoot ou com overshoot limitado.
O IPCC lançou no dia 08 de agosto de 2020, em Genebra, o Relatório especial sobre mudança climática e terra, que reitera a importância de combater o desmatamento, promover recuperação florestal, mudar práticas agrícolas e frear a degradação das terras no mundo inteiro como medidas capazes tanto de combater a mudança do clima quanto de promover a adaptação da sociedade a elas. Logo se pode afirmar que não existe uma conspiração comunista da ONU, mas sim demandas de resposta a políticas Globais de mudança climática, orientadas pela ciência.
Infelizmente o mesmo Brasil em que agora explode o meme da confiança na ciência, no ano de 2020 se afastou mais ainda das metas para redução de emissão de gás carbônico na atmosfera. Segundo dados do INPE/IBGE – 2020, o desmatamento no bioma amazônico brasileiro atingiu 4.749 quilômetros quadrados – no período de janeiro a julho de 2020 ou 474.900 hectares, e, ao longo de 2020, o fogo no Pantanal queimou uma área de 23 mil km² ou 2.300.000 hectares.
E isto tudo sob a olhar condescendente da ditadura Bolsonarista, que cria no Estado Brasileiro um flagrante quadro de Anomia, que conforme o conceito de Ralf Darendorf, ocorre quando “um número elevado e crescente de violação de normas tornam-se conhecidas e são relatadas, mas não são punidas”, incentivado pelo Estado, que estmula o negacionismo cientifico nos mais diversos campos sociais, inclusive contra a vacina, e que beira as raias da loucura na área ambiental, como celebrar o dia do fogo, pois falta uma moral social que prevaleça sobre a de cada um, e aqui importa repensar o conceito de democracia, posto que por mais que determinada ação do poder seja conduzida por um comando eleito pela maioria, isto não significa que ela seja a escolha eticamente correta, muito menos se ela possa ser conduzida sem um fundamento racional, loucura não se torna racional porque com suporte no poder, pelo contrário, ela se torna uma forma totalitária de governo.
Então neste novo ciclo vamos somar as nossas resoluções anuais de caráter privado, a verdadeira reflexão sobre a revolução que precisamos para a humanidade, que exige repensar a forma de exercício da democracia, o que reflete na conexão das mudanças climáticas com os objetivos de desenvolvimento sustentável, firmados na Rio+20 (2012), e que infelizmente a pandemia criou a ilusão de que se pode viver na bolha da residência, quando esta deveria ser um fundamento para repensar a solidariedade aos que sempre estiveram na exclusão e sem opção, pois assim como a vacina, por mais rápida que ela fosse encontrada, nenhum efeito teria se não se traça uma política de imunização coletiva, mas uma vez a ciência nos prova que o melhor da vida depende do agir comunitário para o nosso destino comum.
IBRAIM ROCHA, Advogado, Mestre em processo civil/UFPA, Doutor em Direitos Humanos e Meio Ambiente/UFPA, Procurador do Estado do Pará.
Obrigado
Parabéns, Ibraim, pelo importante alerta. Toda decisão tem consequências. Procuremos tomar aquelas que gerem as melhores (ou menos piores) consequências para quem vai herdar o planeta.
Obrigado Ricardo pela leitura
O brilhante texto do Ibraim Rocha mostra alguns dados importantes, que têm sido deixados de lado: 1) o reconhecimento do caráter óbvio da atuação estatal no sentido da profilaxia em relação a doenças, em especial no contexto de uma pandemia, não implica, necessariamente, a tomada de consciência relação aos efeitos da exploração desenfreada dos recursos naturais; 2) a busca da certeza dogmática e infalível, exterior à ciência e jamais prometida por esta, está na raiz do negacionismo, até porque a resposta científica nem sempre será aquela que se desejaria para justificar as decisões que foram tomadas de antemão, quaisquer que fossem os verdadeiros dados do problema. A história do vírus fabricado no laboratório chinês para impedir os cristãos de irem…
Obrigado pelo registro