- Sebastião Staut -
Faz cerca de um mês que escrevi a mais recente crônica aqui para a revista. Ela já tratava, é verdade, entre outros assuntos, do indefectível coronavírus e de sua escalada impressionante. Ainda assim, não tinha a clareza de que, passado esse período e em razão do vírus, estaria eu aqui, num pequeno sítio, em quarentena familiar bastante disciplinada.
O objetivo nobre de não contaminar e não ser contaminado vem todavia acompanhado dessa sensação estranha de limitação. Limitações de comportamento, mesmo quando voluntárias, muito têm afetado os humores do ser humano, desde que o mundo é mundo - Freud explica - e nem sempre é fácil, na verdade quase nunca é, lidar com esse tipo de barreira.
Num desses dias mais difíceis, em que a gente come demais e abusa um pouco do álcool, coloquei-me aos pés de uma simpática, frondosa e muito frutífera goiabeira, para fazer uma sesta de acordo com espírito rural imposto pela quarentena. Comer, beber, dormir... dar ao corpo a saciedade para aplacar os anseios do espírito.
Imagem: Vitrine do Giba.
Colheu-me logo um sono pesado, acompanhado de um sonhar não menos pesado. Enquanto sofria daquele mal estar próprio de quem quer despertar e não consegue, vi-me completamente enredado na onda onírica. A inusitada situação me colocava numa espécie de juízo final, onde um Ser Superior – não sei defini-lo, o leitor mais religioso pode considerá-lo como Deus, se o desejar, o menos religioso como Gaia mãe-natureza - tinha o poder suficiente não para remeter-me ao céu ou ao inferno, o que seria tarefa simples, mas sim para decretar o fim dos seres humanos e de seus dias no planeta Terra.
Tratava-se, em verdade, de um julgamento de que participavam dois réus postulando por uma única absolvição possível. Eu, representando sem procuração e indevidamente no meu entender, a raça humana e, por outro lado, a goiabeira, na qual havia buscado refúgio após o repasto exagerado. A goiabeira, em posição ao meu sentir mais confortável, representava apenas a si mesma.
Os termos do Ser Superior eram inegociáveis. Teríamos eu e a goiabeira a possibilidade de pronunciar, em defesa própria, sete palavras. Isso mesmo, sete parcimoniosíssimas palavras. Ao final do sumário rito, o ser superior decidiria quem deveria sobreviver: a raça humana, pobremente representada por mim no infausto processo, ou a goiabeira.
Sem recursos, instância única e final, em que seria pronunciada a decisão e “consumatum est”.
Já em curso o processo de julgamento, me foi franqueada a palavra pelo Ser Superior. Imaginei, como advogado, evocar a recentíssima jurisprudência do STF para, como réu em processo cuja pena consistiria na própria extinção da espécie, ter o direito e falar por último, notadamente se tratando o meu oponente de mera goiabeira, que ainda por cima respondia apenas em nome próprio, e não de toda uma coletividade. Parecia-me muito claro o grave panorama e a enorme responsabilidade que me tocava.
Mas como reduzir um pleito de tamanha complexidade em sete palavras? O próprio Supremo levara um tempão nesse julgamento...
Enquanto eu tentava raciocinar, a tonitruante voz do Ser Superior ecoou, mandatória e definitiva:
- Comece imediatamente o humano sua defesa, sete palavras serão consideradas!
Eu, atônito, exclamei minha revolta dizendo firmemente e em altos brados.
- É um absurdo!
Ao que respondeu o Ser Superior.
- Agora só lhe restam quatro.
Mas que atrabiliário! Pressionado pelo tempo, pensei algo de impacto. Aquele Ser Superior haveria de dobrar-se aos prodígios da humanidade, quanto mais porque do outro lado, como “ex adverso”, estava uma goiabeira. Que teria ela a apresentar? Numa grande sacada, pronunciei:
- Beethoven!
Disse o Ser Superior, pouco impactado.
- Ok, prossiga.
Alcançava-me já o mais puro desespero. Falei.
- Taj Mahal!
Nenhum efeito visível.
- Paris!
De parte do Ser Superior, percebeu-se um muxoxo.
- Einstein!
Perguntou então o Ser Superior.
- O cientista ou o hospital?
Era minha última palavra. Saquei uma tirada de mestre, digna de um grande advogado.
- Os dois.
Ao que respondeu o Ser Superior.
- Ahã.
Terminada minha esforçada defesa, ainda que sem perceber o esperado impacto nos designios do Ser Superior, foi chamada a goiabeira.
- Goiabeira, suas sete palavras, sem mais delongas.
A goiabeira, por não ter o dom da palavra, se fazia representar no insólito julgamento por um estagiário de direito, mercê do elevado espírito de justiça de nosso Ser Superior. Ouviu-se então a primeira palavra da defesa do réu-vegetal.
- Goiabada.
Para surpresa geral, ouviu-se o martelo do grande e último julgador.
- Declaro encerrado o julgamento.
Eu, incontido diante daquele absurdo processual, indaguei.
- Mas como? A goiabada não pode ser citada em defesa. Leva açúcar e a cana não está representada no julgamento. É uma inaceitável intervenção de terceiros!
Mais uma vez o Ser Superior manteve-se impávido colosso.
- Declaro ganho de causa à goiabeira, que permanecerá povoando nossos campos tropicais. A humanidade, por sua vez, será extinta. Publique-se e intime-se.
Numa última e desesperada tentativa, lancei a pergunta germinal:
- Mas, por que?
A qual me foi prontamente respondida.
- Porque eu gosto.
Acordei então, “ex abrupto”, estômago ainda pesado, suando frio, mas grandemente aliviado.
Foi um sonho! A humanidade ainda existia, a goiabeira também, idiotas em carreatas contra o isolamento social também...
Nem tudo são flores, mas estamos aqui. Ouço que no rádio está tocando Jorge Ben: “eu quero paz e arroz, amor é bom e vem depois”...
Há esperança.
Sebastião Vilela Staut Junior é advogado, Procurador do Estado de São Paulo e membro do IBAP.