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Uberização e a tirania do capitalismo digital

- Guilherme José Purvin de Figueiredo -


O Brasil de 2021 foi palco de uma das maiores expressões de resistência da classe trabalhadora contra o capitalismo digital: a greve dos motoristas de aplicativos. Esse não foi um movimento comum, mas um grito de revolta contra um sistema que transforma vidas humanas em estatísticas descartáveis. Organizada em redes sociais e alimentada pela indignação coletiva, a greve expôs o verdadeiro rosto das plataformas digitais: um novo aparato de exploração mascarado de modernidade.


Em março de 2024, o governo federal apresentou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei Complementar (PLP) 12/2024, visando regulamentar a atividade dos motoristas de aplicativos de transporte individual, como Uber e 99. Embora a proposta buscasse estabelecer direitos mínimos para esses trabalhadores, ela foi recebida com críticas significativas por parte da categoria. O projeto propunha, em síntese:


  • Uma remuneração de R$ 32,10 por hora efetivamente trabalhada, destinada a cobrir custos operacionais e garantir uma renda mínima mensal de R$ 1.412.

  • Obrigatoriedade de inscrição dos motoristas no Regime Geral da Previdência Social (RGPS), com contribuição de 7,5% por parte dos trabalhadores e 20% pelas plataformas, incidindo sobre a parcela remuneratória de R$ 8,03 por hora.

  • Garantia às motoristas de acesso aos direitos previdenciários, incluindo o auxílio-maternidade.


O projeto, contudo, não foi bem acolhido pelos motoristas que pretendia defender. No entendimento de parte deles, o valor proposto por hora não considerava as variações de demanda, trânsito e tempo de espera, fatores que influenciam diretamente na renda dos motoristas. A Federação Brasileira de Motoristas de Aplicativos (Fembrapp) destacou que o pagamento por hora poderia incentivar jornadas excessivas e não refletia a realidade do trabalho. Havia preocupações de que a regulamentação pudesse reduzir a flexibilidade dos motoristas, característica valorizada por muitos na profissão. Críticos temem que a proposta confere poderes às plataformas para punir e controlar os motoristas, comprometendo sua autonomia. Além disso, a obrigatoriedade de contribuição ao INSS foi vista com ressalvas, especialmente considerando que muitos motoristas já enfrentam dificuldades financeiras. A Fembrapp apontou que os custos adicionais podem não ser viáveis para todos os trabalhadores.


Em resposta ao PLP 12/2024, motoristas de aplicativos organizaram manifestações em diversas cidades do país. Em São Paulo, por exemplo, houve protestos contra o projeto, com motoristas expressando insatisfação com os termos propostos. Especialistas na área laboral criticaram o projeto, considerando-o insuficiente para garantir direitos fundamentais aos motoristas e apontando que a proposta mantém a subordinação dos trabalhadores às plataformas sem assegurar os benefícios previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).


Diante das críticas e mobilizações, o governo federal sinalizou abertura para debates e ajustes no texto, visando construir uma regulamentação que equilibre os interesses dos motoristas, das plataformas e da sociedade. O projeto segue em tramitação no Congresso Nacional, onde será objeto de discussões e possíveis emendas.


Os motoristas de aplicativos vivem sob condições que mais lembram um sistema feudal moderno. Tarifas baixas, comissões abusivas – que chegam a consumir até 30% dos ganhos – e custos crescentes, como os dos combustíveis, tornam inviável a sobrevivência digna. Em 2021, a alta do preço da gasolina não foi um detalhe, mas o estopim que jogou uma categoria inteira em um abismo financeiro.


A precariedade não para por aí: a insegurança pessoal também é constante. Assaltos, sequestros-relâmpago e assassinatos compõem o cotidiano desses trabalhadores, enquanto as plataformas, como Uber e 99, continuam impassíveis, protegendo apenas seus lucros. Isto para não citar também casos teratológicos de racismo por parte dos usuários (consumidores) dos serviços.


E aí está o grande truque: essas plataformas vendem a ilusão de liberdade e autonomia. Slavoj Žižek, em The Courage of Hopelessness (2018), descreve essa dinâmica: “O algoritmo é o chefe perfeito: não se pode negociar com ele, não se pode culpá-lo, mas ele controla cada aspecto da sua vida”. Sob essa lógica, a humanidade é apagada e substituída por uma máquina de exploração.


Os motoristas não pedem luxos; pedem o básico. Tarifas que cubram custos operacionais e proporcionem um lucro digno, redução das comissões escorchantes e medidas de segurança reais. Por fim, clamam pelo reconhecimento formal como trabalhadores, com direitos garantidos.


Mas o que as plataformas oferecem? Ajustes paliativos e promessas vazias. O sistema aposta no cansaço da resistência, enquanto os motoristas continuam como os modernos operários de Tempos Modernos (Chaplin, 1936), esmagados por engrenagens que não podem controlar.


Você não estava aqui


A greve dos motoristas de 2021 foi mais do que um protesto; foi uma resposta ao capitalismo que agora veste a máscara da tecnologia. A desumanização do trabalho não é uma falha do sistema – é sua essência. Ken Loach, renomado cineasta britânico, é conhecido por retratar com profundidade e sensibilidade as lutas da classe trabalhadora contra sistemas opressivos. Suas obras oferecem uma crítica contundente ao capitalismo e à precarização das condições de vida e trabalho, características que dialogam diretamente com o episódio da greve dos motoristas de aplicativos no Brasil.


Ken Loach aborda frequentemente a exploração no mercado de trabalho, com foco em trabalhadores que enfrentam condições desumanas em nome do lucro corporativo. Um de filmes ilustra bem a realidade enfrentada pelos motoristas de aplicativos. O filme Você não estava aqui (2019), que não é um contraponto ao filme Ainda estamos aqui (2024), talvez seja o mais emblemático. Ele retrata a vida de uma família que tenta sobreviver em meio ao "gig economy" – o mesmo modelo de trabalho dos motoristas de aplicativos. Ricky, o protagonista, se torna um motorista autônomo após ser seduzido pela promessa de independência. Contudo, ele logo descobre que a liberdade oferecida pelas plataformas é ilusória, pois enfrenta jornadas extenuantes, custos operacionais que consomem sua renda e a pressão de um sistema impessoal. É uma denúncia clara da precarização laboral sob o capitalismo digital.


O episódio da greve dos motoristas no Brasil em 2021 reflete o que Loach denuncia em seus filmes: trabalhadores presos em um ciclo de exploração, sob um sistema que promete flexibilidade e autonomia, mas entrega precariedade e desgaste físico e mental. Assim como Ricky em Você Não Estava Aqui, os motoristas de aplicativos são forçados a absorver todos os custos e riscos, enquanto as plataformas lucram sem oferecer garantias ou segurança.


A falácia do empreendedorismo individual


Como ponderou recentemente um estudante de Psicanálise do Sede Sapientiae que prefere não se identificar, sem regulamentação legal ou intervenção, o modelo de trabalho uberizado é movido pela lógica da eficiência capitalista. Esse modelo é adotado em diversos setores porque reduz significativamente os custos de mão de obra. Como consumidor, busco serviços mais acessíveis economicamente, o que resulta no pagamento de valores absolutos menores. Como trabalhador, integro-me a esse modelo de trabalho uberizado, em conformidade com a estrutura predominante de organização laboral. Assim, o que é apresentado como uma escolha é, na verdade, uma imposição, mascarada pela ilusão de fazer parte da categoria de empreendedores — um conceito distorcido que não reflete a realidade concreta.


Žižek desmantela a narrativa do empreendedorismo individual, um mantra do neoliberalismo: “O trabalhador precário é encorajado a se ver como um empreendedor, enquanto o sistema o trata como um descartável” (Like a Thief in Broad Daylight, 2019). Essa é a grande falácia do nosso tempo: a ideia de que é possível vencer sozinho em um sistema que foi projetado para esmagar os mais fracos.


A greve de 2021 não foi apenas sobre motoristas; foi sobre todos nós. Foi um grito contra um sistema que desumaniza, explora e descarta. Não há avanço tecnológico que justifique a destruição de vidas. Como afirmou o prof. Carlos Marés em artigo publicado aqui na Revista PUB há algum tempo, "Se o capitalismo depende da superexploração do trabalho e do empobrecimento das pessoas ao limite da fome ou depende da superexploração da natureza ao limite da morte de espécies e destruição das águas, como ocorre nos garimpos, então, inviável é o capitalismo." ("Trabalho Escravo: Até Quando?")


Como lucidamente afirma Lucas Bolzan, "O direito do trabalho é instrumento de transformação social e um regulador do nosso modelo de sociedade. A nossa Constituição consagrou o valor social do trabalho e a preservação da dignidade humana com a ideia de produzir justiça social dentro de uma sociedade capitalista – é isso que devemos buscar" ("A reflexão necessária para o dia do trabalhador em 2022", in Revista PUB - Diálogos Interdisciplinares).


O Supremo Tribunal Federal (STF) tem debatido intensamente o vínculo empregatício entre motoristas de aplicativos e as plataformas digitais, buscando estabelecer parâmetros que definirão o futuro do trabalho e da justiça no Brasil. Em 1º de março de 2024, reconheceu, por unanimidade, a repercussão geral de um recurso que discute essa questão, indicando a intenção de unificar o entendimento sobre o tema em todo o país. Anteriormente, em 5 de dezembro de 2023, sua 1ª Turma anulou uma decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que havia reconhecido vínculo de emprego entre um motorista e a plataforma Cabify. O relator, ministro Alexandre de Moraes, afirmou que a Justiça do Trabalho vinha descumprindo precedentes do STF sobre a inexistência de relação de emprego entre empresas de aplicativos e motoristas. Em 9 e 10 de dezembro de 2024, o STF realizou uma audiência pública para debater o vínculo empregatício entre motoristas de aplicativos e as plataformas digitais. Foram ouvidos representantes do governo, do Ministério Público do Trabalho, de entidades sindicais, de empresas e especialistas, apresentando diferentes perspectivas sobre a necessidade de regulamentação do trabalho em plataformas digitais.


A posição majoritária da Corte sustenta que o modelo de trabalho desses motoristas é incompatível com o vínculo de emprego previsto na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), decisão que tem levado à anulação de julgados da Justiça do Trabalho que reconheciam a relação empregatícia. Ao atribuir repercussão geral a uma ação contra a Uber, com o objetivo de uniformizar o entendimento jurídico, o STF influencia a retirada de 21% dos casos relacionados à terceirização e à uberização da esfera trabalhista. Em outras palavras, fere frontalmente o art. 114 da Constituição Federal, que trata da competência da Justiça do Trabalho. Apesar de promover audiências públicas que escutam diversos setores, a postura do STF demonstra uma priorização das demandas econômicas e das empresas de tecnologia em detrimento dos direitos trabalhistas e da dignidade dos trabalhadores, revelando um posicionamento que ignora a realidade de precarização enfrentada por milhões de brasileiros, contribuindo para a perpetuação de desigualdades sociais e para a fragilização da proteção jurídica no trabalho. Que este não venha a ser um lúgubre desfecho para um ramo do Direito que já contou com nomes da estatura de A. F. Cesarino Junior, Oris de Oliveira e João José Sady.


Referências Bibliográficas

  • Žižek, Slavoj. The Courage of Hopelessness: Chronicles of a Year of Acting Dangerously. Allen Lane, 2018.

  • Žižek, Slavoj. Like a Thief in Broad Daylight: Power in the Era of Post-Human Capitalism. Allen Lane, 2019.

  • Chaplin, Charlie. Modern Times. United Artists, 1936.

  • Loach, Ken. I, Daniel Blake. Sixteen Films, 2016.

  • Loach, Ken. Você não estava aqui. 2019.

  • Inteligência Artificial e Direito do Trabalho - Entrevista com Otávio Pinto e Silva concedida em 1º de junho de 2023 para o podcast Narrativas do Antropoceno.

  • Direito do Trabalho a serviço do Capitalismo - Entrevista com Manuel CarlosToledo Filho concedida em 7 de julho de 2023  para o podcast Narrativas do Antropoceno.


 

Guilherme José Purvin de Figueiredo, pós-doutorando junto ao Departamento de Geografia da FFLCH USP, é graduado em Letras e Direito. É autor de quatro livros de contos ("Laboratório de Manipulação", "Sambas & Polonaises", "Virando o Ipiranga" e "Paredes Descascadas") e de diversos livros de Direito Ambiental.

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