-Guilherme José Purvin de Figueiredo-
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Os fatos ocorridos ao longo do quadriênio de 2018-2022 e início de 2023 constituem rico repositório de crimes e atentados contra a democracia, a cultura, a saúde pública, o meio ambiente e os povos originários. É inconcebível, assim, que jornais que se dizem democráticos abram suas páginas para a manifestação do símbolo desse período de degradação constitucional do país. Foi isso o que fez a Folha de S. Paulo, fato que levou Ricardo Kotscho, Alfredo Attié, Ricardo Noblat e Lilia Schwarcz, dentre muitos outros, a manifestarem sua irresignação. O jornal, porém, não cedeu às críticas. Ao decidir publicar texto assinado por aquele homem, a Folha assumiu seu lado no espectro político.
No jornalismo, a função do editor é definir a pauta e os articulistas, estabelecer o que cada repórter deve investigar, qual ênfase deve ser dada a cada passagem de uma reportagem, qual espaço é reservado para uma matéria etc. Os veículos de imprensa têm seus próprios interesses e o máximo que concedem é evitar que transpareça com muita evidência de que lado estão. Quando já não se ocupam disso, nada mais se pode esperar deles.
Todos sabem que, neste espaço da Revista Pub, não se encontrará nenhum artigo de conotação racista, sexista ou antidemocrática. Podados os extremos, resta um amplo leque ideológico — daqueles e daquelas que condenam com veemência os fatos que tiveram início na época das eleições de 2022. Por exemplo, as manobras ilegais da Polícia Rodoviária Federal nos estados do Nordeste, no dia da votação do segundo turno para a Presidência da República, em outubro de 2022, impedindo o trânsito de eleitores para as urnas. Ou o atentado fascista de 8 de janeiro de 2023, em Brasília, que culminou com a destruição do patrimônio público e a afronta aos poderes constituídos.
Aprendi nas aulas de Semiótica Discursiva da Prof. Elizabeth Harkot de La Taille que importa detectar certos "detalhes". Tomemos dois exemplos:
Exemplo 1 – Em 20/11/2024, os jornais do país revelam que a Polícia Federal descobriu que militares (a maioria da reserva) planejavam assassinar Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes. As conversas se deram na casa de Braga Netto. Em editorial do dia, a Folha de S. Paulo recomenda que "a polícia, e principalmente, Justiça, se comportem de modo mais técnico e menos político" e afirma ter sido "precipitada a decisão do presidente do tribunal, ministro Luís Roberto Barroso, de distribuir também a Moraes a relatoria do inquérito sobre o atentado da semana passada, por entender que há conexão com as ações do 8/1. O mais correto teria sido seguir os trâmites ordinários até uma conclusão mais sólida". Aparentemente, o editorial da Folha estaria apenas pugnando por sensatez e sobriedade, em defesa do Estado Democrático de Direito. Mas basta uma análise mais detida das palavras escolhidas pelo jornal para entendermos o que ele está defendendo:
a) Lança a sugestão de que a Polícia Federal e, principalmente, o Poder Judiciário, estão se comportando com objetivos políticos (e não "técnicos").
b) Em seguida, utiliza o termo "atentado" para a autoimolação do fanático bolsonarista catarinense que detonou explosivos destinados a matar ministros do STF e, para os acontecimentos terríveis ocorridos dias após a posse de Lula, usa a expressão "ações do 8/1" — "ações", termo inócuo, desapaixonado, que tanto poderia ser utilizado para um piquenique promovido por escoteiros como para o lançamento de mísseis balísticos pela Rússia.
Inconformado com a desfaçatez do jornal, afirmou o professor Renato Janine Ribeiro, em carta do leitor: "Estou chocado com esse editorial. Em vez de repudiar a tentativa de assassinar os eleitos mais o presidente do TSE, bem como o golpe que então se daria, o jornal coloca questões que, obviamente, serão respeitadas. É óbvio que os criminosos terão direito de defesa (ampla), que se beneficiarão das leis que queriam revogar, do Estado de Direito que pretendiam abolir. Mas nesta hora é necessário um firme repúdio a tais práticas. Ficou faltando isso!"
Exemplo 2 – Sexta-feira, dia 21 de novembro, os jornais noticiam nas manchetes que a Polícia Federal indiciou Bolsonaro, Braga Netto e mais 35 pessoas em inquérito da trama golpista.
No editorial do dia, a mesma Folha manifesta-se sobre as oportunidades nas relações comerciais do Brasil com a China e com o resto do mundo e sobre a fragilidade dos projetos federais de leis sobre segurança pública. O silêncio vale por mil palavras. A Folha está incomodada com o rumo da história e tenta trazer outras questões para debate. É como se, em meio a um incêndio, estivesse na sala de recepção chamando a atenção dos convidados: "Comentemos outros temas, Comércio Internacional e Segurança Pública!"
Nós, que nos definimos como "defensores do Estado Democrático de Direito" e lutamos em defesa da Justiça Socioambiental, já descartamos há um bom tempo coisas do tipo Veja. No entanto, continuamos complacentes com a linha editorial da Folha, acreditando que, por vezes, ocorrem apenas "deslizes". Assim, na medida em que nos certificamos de que lado está aquele jornal, eu me pergunto: De que lado estamos nós, que ainda lemos e nos damos ao trabalho de criticar a Folha?
Atento aos desdobramentos das notícias trazidas pela Polícia Federal a respeito dos planos criminosos do círculo próximo a Jair Bolsonaro, leio o editorial do dia 27/11/24, um dia após o levantamento do sigilo do inquérito policial, intitulado:
"Suspeitas de corrupção se agravam no custoso Judiciário".
A denúncia é grave. Mas não haveria outro dia que não aquele em que ficamos sabendo que Bolsonaro planejou, atuou e teve domínio do plano golpista, para o jornal apontar o dedo para o Poder Judiciário? Afinal, a matéria trazia algo que tivesse acabado de ser revelado ou estava simplesmente na gaveta, aguardando o momento propício?
Sei que é difícil, num país como o nosso, criticar a imprensa, pois a questão resvala na liberdade de informação e comunicação. A Constituição de 1988 estabelece que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. Em janeiro deste ano, o IBAP destacava que o Brasil caiu, de 2015 a 2022, 58 posições no ranking dos países que respeitam a liberdade de expressão. Estávamos entre os 15% dos países considerados democráticos; passamos para o 89º lugar. Embora em 2023 a situação tenha melhorado um pouco, são expressivos os casos de desrespeito à liberdade de imprensa. Por exemplo, na Bahia, um juiz proibiu o Intercept Brasil de publicar matéria sobre o assassinato da líder quilombola Mãe Bernardete. No Paraná, uma juíza proibiu a exibição de uma reportagem televisiva, acolhendo pedido do presidente da Assembleia Legislativa, Ademar Traiano (PDS-PR). No Distrito Federal, um juiz impôs a mutilação de reportagem da Revista Piauí 201 sobre o Programa Mais Médicos. E, neste ano de 2024, um juiz catarinense ajuizou uma série de ações contra os mais diversos meios de comunicação, por utilizarem uma expressão que, segundo ele, lhe causava danos morais ("estupro culposo"). Esses fatos levaram o IBAP a emitir nota alicerçada, sobretudo, no art. 5º, incisos IV, IX e XIV da Constituição Federal.
Se nos ativermos exclusivamente ao aspecto jurídico, de fato, será muito difícil cogitar punir um jornal como a Folha por formar a opinião pública no sentido da inocência do ex-presidente golpista e dos seus trinta e tantos asseclas. Mais adequado seria boicotar quem está a serviço da extrema direita. Nesse caso, precisaríamos de opções jornalísticas — que existem, mas não são ágeis o suficiente nem contam com grandes equipes de jornalistas. Sentimos falta de um jornal que faça frente à Folha, Estadão, Globo ou Veja. Que não hesite em opor-se ao fascismo. Público leitor, certamente, esse novo jornal terá, independentemente de publicidade de Friboi, Havan ou Habib's.
E, se alguma dúvida há a respeito da postura histórica do jornal do Grupo Frias, sugiro a leitura do editorial publicado em 2 de abril de 1964, dia imediatamente subsequente ao golpe militar que depôs João Goulart (mantida a grafia da época):
"Editorial: Em defesa da lei
Não foi por falta de advertencias que a situação nacional chegou ao estado em que hoje se encontra, de profunda crise militar e política, opondo-se ao presidente da República ponderável parcela das Forças Armadas e diversos lideres civis de incontestavel autoridade, responsaveis pelo governo de importantes Estados da Federação.
Ninguem por certo desejou tal situação, excluidos certamente os elementos comunistas para os quais a situação do país estará tanto melhor quanto pior em verdade for. Esses elementos, infelizmente, vêm agindo há muito em altos cargos da administração publica federal e, de certa maneira, orientando muitas ações do governo."
Uma réplica desse texto claramente alinhado com aqueles que rompiam a ordem democrática em 1964 poderia ter sido utilizada para o editorial de 9 de janeiro de 2023, caso os crimes agora denunciados pela Polícia Federal tivessem sido consumados.
Guilherme José Purvin de Figueiredo, pós-doutorando junto ao Depto. de Geografia da FFLCH-USP, Coordenador Internacional do IBAP e da APRODAB, é escritor e Procurador do Estado de São Paulo Aposentado. Sua coluna na Revista PUB Diálogos Interdisciplinares é publicada todo dia 24.
Artigo muito importante ao demonstrar a raiz do pensamento antidemocrático do jornal. Lembro a luta do professor Fábio Konder Comparato, desde os anos 90, pela necessidade de democratizar a mídia e criticava a omissão do Legislativo em criar as leis necessárias para garantir o cumprimento da função da imprensa atribuída pela Constituição Federal. Destaco um trecho de Comparato, em Observatório da Imprensa, 11/01/2011: "... para que o Brasil ingresse em uma verdadeira democracia, os meios de comunicação precisam ser ‘utilizados pelo povo como seus canais de comunicação, e não apropriados por grandes empresários, que deles se utilizam exclusivamente em seu próprio interesse e benefício’."https://www.observatoriodaimprensa.com.br/interesse-publico/que-o-governo-nao-se-acovarde-diante-da-midia/
A FSP está obviamente e cada vez mais cortejando a extrema direita golpista, por esta, aparentemente, defender o neoliberalismo. Vale tudo para a Folha obter o que deseja, até mesmo um editorial absurdo como esse, partindo da primeira emenda da Constituição norteamericana como se o Brasil devesse se curvar a ela, em sua interpretação radical.
Aquela antiga propaganda premiada da FSP sobre ser possível falar mentiras dizendo apenas verdades ilustra bem os editoriais criticados nesse artigo certeiro e corajoso.
Sem sombra de dúvida, a FSP e a grande imprensa em geral estão em um cruzada ultra liberal conservadora na defesa do indefensável, com ataques às instituições, particularmente ao STF, e com posições absurdas, como nesse editorial ridículo em defesa de uma pretensa "liberdade de expressão", em que citam a primeira emenda da constituição estadunidense. Deplorável. E o artigo vai ao cerne, ao busílis da questão.