-GUILHERME PURVIN e RUI VIANNA-
A banda King Crimson, pioneira no rock progressivo, fundada em Londres no ano de 1968 pelo guitarrista Robert Frip, contou com alguns excelentes letristas, especialmente se os compararmos com outras bandas da época – por exemplo, o Deep Purple ou mesmo o Yes, com suas letras vazias e pernósticas. Richard Palmer-James, no período de 1973-1974, participou dos álbuns Larks' Tongues in Aspic (1973), Starless and Bible Black (1974) e Red (1974), onde contribuiu com as letras de “Exiles”, “The Night Watch”, “Lament” e “Starless”. No período de 1981 a 2013, Adrian Belew participou dos álbuns Discipline (1981), Beat (1982), Three of a Perfect Pair (1984), Thrak (1995), The ConstruKction of Light (2000) e The Power to Believe (2003). “Elephant Talk”, “Indiscipline”, “Neurotica” e “Dinosaur” são algumas das colaborações de Belew que, ademais, era também vocalista. Esses integrantes do K.C. deram diferentes cores às composições da banda em suas diferentes fases, sempre contando com a presença de Fripp, fundador e membro destacado da banda.
Um nome, porém, destacou-se ao longo das diversas formações da banda ao longo do tempo: Pete Sinfield, nascido em 1943 e falecido no último dia 14 de novembro de 2024, foi, sobretudo em 1969, um poeta visionário em canções assinadas entre 1969 e 1971, de que é exemplo "21st Century Schizoid Man" (1969): Uma crítica feroz à guerra, tecnologia descontrolada e à alienação da sociedade moderna, com versos impactantes como "Blood rack, barbed wire / Politicians' funeral pyre", refletindo a atmosfera caótica e distópica do final dos anos 60.
A letra que nos parece mais notável é Epitaph, lançada em 1969 no álbum In the Court of the Crimson King e cantada maravilhosamente por Greg Lake, que logo deixaria a banda para formar o trio Emerson, Lake & Palmer. Epitaph permanece incrivelmente relevante e perturbadoramente profética. Ao examinar essa obra à luz dos acontecimentos contemporâneos, percebemos como Sinfield capturou, com meio século de antecedência, o caos e a violência globais nestes tempos de ultraliberalismo e genocídios.
A letra de Epitaph reflete uma visão sombria de um mundo à beira do colapso. As imagens são fortes e apocalípticas (veja vídeo AQUI:
"The wall on which the prophets wrote / Is cracking at the seams. / Upon the instruments of death / The sunlight brightly gleams."
(A parede na qual os profetas escreveram / Está rachando nas emendas. / Sobre os instrumentos de morte / O sol brilha intensamente.)
Os versos sugerem a degradação das estruturas que sustentam a civilização e a ironia de uma luz brilhante que ilumina apenas a destruição. Sinfield parece antever o desmoronamento de valores como a empatia, a solidariedade intergeracional, a busca de solução pacífica para os conflitos e a possibilidade de uma terceira e última guerra mundial.
Em outro trecho Epitaph, tem-se a impressão de que Sinfield já estava falando sobre o uso de inteligência artificial e de “terceirização” do pensamento crítico e da criatividade humana:
"Knowledge is a deadly friend / When no one sets the rules. / The fate of all mankind, I see, / Is in the hands of fools."
(O conhecimento é um amigo mortal / Quando ninguém estabelece as regras. / O destino de toda a humanidade, eu vejo, / Está nas mãos de tolos.)
A letra denuncia a falta de controle ético sobre o avanço tecnológico e científico. O "destino nas mãos de tolos" ressoa como uma advertência atemporal sobre a governança irresponsável e a busca desenfreada por poder. Denuncia como o conhecimento pode se tornar destrutivo quando não há ética. Hoje, sistemas de IA são utilizados para manipulação de informações, vigilância em massa, discriminação algorítmica e até desenvolvimento de armas autônomas letais. O refrão de Epitaph encapsula o sentimento de desespero e desorientação de uma sociedade que perdeu o rumo:
"Confusion will be my epitaph, / As I crawl a cracked and broken path. / If we make it, we can all sit back / And laugh. But I fear tomorrow I’ll be crying."
(A confusão será meu epitáfio, / Enquanto rastejo por um caminho rachado e quebrado. / Se conseguirmos, todos podemos sentar e rir. / Mas temo que amanhã eu estarei chorando.)
A "confusão" é a falta de direção em um mundo dilacerado por crises sociais, políticas e existenciais. A imagem do "caminho rachado e quebrado" reflete a fragmentação psicológica do ser humano hoje, ecoando os medos contemporâneos sobre o colapso das democracias, o aumento das tensões internacionais e a crise climática.
Pete Sinfield, enfim, deixou um legado de letras que combinam profundidade filosófica e beleza poética. Sua rápida passagem pelo King Crimson influenciou a poesia de outras bandas de rock. Epitaph permanece como uma das suas obras mais impactantes, um lembrete poderoso das fragilidades e desafios da condição humana. Um ano mais tarde, a banda Black Sabbath, embora musicalmente muito inferior ao King Crimson, também parece ter sido influenciada pela poesia de Sinfield, como no caso de War Pigs, do álbum Paranoid (1970).
A banda passou por diversas fases, formações e estilos, sempre trazendo performances extraordinárias e inovadoras, transitando por vários estilos musicais. O certo é que, seja em que época for, contou com músicos excepcionais, realizando instrumentação intrincada, sofisticada e complexa, como a demonstrada na assim chamada fase colorida, em que foram lançados os três álbuns Discipline (1981 - Vermelho), Beat (1982 - Azul) e Three of a Perfect Pair (1983 -Amarelo), uma trilogia que muito bem sintetiza o ecletismo da sonoridade da banda .
A discografia oficial da banda é imensa, considerada a longevidade pouco usual para o estilo (quase tão longa quanto os Rolling Stones). E sempre com a presença constante de Robert Fripp, guitarrista e mentor do grupo, dono da impressionante marca de mais de 700 participações em sua discografia, que inclui gravações com David Bowie, Blondie, Brian Eno, Peter Gabriel, Daryl Hall, the Roches, Talking Heads , entre vários outros.
Longa vida ao Rei Escarlate!
Rui Vianna é advogado aposentado e associado do IBAP. Guilherme José Purvin de Figueiredo, pós-doutorando junto ao Departamento de Geografia da FFLCH USP, é graduado em Letras e Direito. É autor de quatro livros de contos ("Laboratório de Manipulação", "Sambas & Polonaises", "Virando o Ipiranga" e "Paredes Descascadas") e de diversos livros de Direito Ambiental.
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