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A Professorinha (e o jovem juiz)

Atualizado: 5 de dez. de 2023

-MANOEL CARLOS TOLEDO FILHO-


O ano era 1991.


O local, Campinas.


O contexto: um processo judicial trabalhista, já em fase de execução, que estava sob a responsabilidade de um jovem juiz no início de sua carreira.


Naquela época, as poucas Juntas de Conciliação e Julgamento (JCJs, hoje Varas do Trabalho) existentes na cidade tinham muitos processos e parca infraestrutura. Os servidores eram poucos, os processos eram muitos, e, não raro, mesmo itens elementares - como papel para as antiquadas impressoras - não os havia em quantidade suficiente.


A coisa mais próxima de um celular eram os comunicadores utilizados pela tripulação da Enterprise na série Jornada nas Estrelas. Internet, nem na imaginação estava. Computadores, até existia um ou outro, mas era artigo de luxo com uma tecnologia que hoje não serviria sequer para jogar xadrez.


No âmbito da legislação processual, as ferramentas presentes igualmente eram precárias. Para conseguir eventualmente penhorar dinheiro do devedor, os oficiais de justiça teriam de se deslocar fisicamente de agência em agência, aproveitando o itinerário para rezar para São Longuinho e torcer pela boa vontade do gerente, pois, sem ela, nem o Santo resolveria. Antecipação de tutela era um instrumento que somente chegaria anos depois. Nem mesmo uma reles sanção por litigância de má-fé poderia, a rigor, ser aplicada de ofício; dependeria de requerimento específico da parte interessada (que não o formulava nunca).


Era esse, pois, o cenário no qual nosso jovem magistrado (JM) procurava exercitar seus misteres institucionais nos aparentemente infindáveis autos amarelos que diariamente se avolumavam na acanhada mesa de seu apertado gabinete. E eis que, ali estando ele um final de tarde a matutar sobre melindres judiciais multifários, adentra à sala o Diretor de Secretaria (DS):


DS: Doutor, tem uma senhora aí fora que gostaria de falar com o Sr.


JM: É advogada?


DS: Não, ela é arrematante num processo nosso...parece que houve ali algum problema...


JM: Diga a ela para entrar.



O Diretor cede passagem a uma senhora de cerca de 1:50 m de altura, e que deveria estar perto de seus 60 anos de idade. Usava óculos redondos com lentes pequenas, que pareciam deixá-la fisicamente ainda menor do que já era. Identificou-se como professora primária (PP).


JM: Pois não. A Sra. queria falar sobre uma arrematação?


PP: Isso mesmo, doutor.


JM: O que houve?


PP: Veja, Dr. Eu nunca havia vindo à Justiça antes. Mas eu fiquei sabendo que, aqui, era possível comprar, por leilão, um telefone por um preço mais barato. Eu não tenho telefone, meu salário de professora, o Sr. sabe, é pouco, então, me pareceu uma boa ideia adquirir um por aqui...


(Nesse passo, é necessário esclarecer: o “telefone”, no caso, era o direito de possuir uma linha fixa, coisa que, na época, dependia de instalação pela empresa pública correspondente, a hoje extinta TELESP. Era um bem cujo valor, em cifras de hoje, giraria em torno de 5 mil reais ou algo assim).


JM: E a senhora arrematou?


PP: Arrematei sim, Dr. Fiquei muito feliz em ter conseguido. Mas aí mesmo é que reside o problema!


JM: Por quê?


PP: Quando eu fui até a TELESP, eles me informaram que o titular anterior da linha, ou seja, o devedor no processo daqui, tinha deixado de pagar as contas telefônicas, pelo que a linha tinha sido desligada; e que, passado um ano do desligamento, a linha é automaticamente cancelada. Então, a linha não existe mais e, pelo regulamento deles, eu teria de ingressar em um plano de expansão, onde demoraria mais ou menos um ano para eu finalmente ter a linha instalada em casa...


JM: Puxa, que situação desagradável.


PP: Não é, Dr.? Então. Por isso estou aqui hoje, para o Sr. resolver esse meu problema.


JM: Eu, sinceramente, não sei se conseguirei ajudar a Sra. nisso...a empresa telefônica tem as regras dela, como os processos demoram, as vezes esses desencontros acontecem, é lamentável, até reconhecemos nossa falha, mas...


Nesse momento, a miúda professora interrompeu delicadamente a fala do jovem juiz, segurou suas mãos e, mirando-o diretamente nos olhos através das diminutas lentes de seus óculos, asseverou, convicta:


PP: Dr., eu usei as minhas economias para arrematar essa linha. Eu confiei na Justiça. Agora, estou sem dinheiro e sem telefone. Eu sou só uma professora primária; não tenho poder, não posso fazer nada. Mas o Sr. pode. O Sr. é o Juiz. Se o Sr. mandar, eles irão obedecer!


Nesse instante, o juiz se viu intimamente enredado por perplexos pensamentos: “Caramba! A mulher, pelo jeito, está pensando que eu sou Deus! E agora? Como eu resolvo isso?”. Premido pela consciência, e não querendo deixar a professorinha sem resposta, lhe disse:


JM: Olha, vamos fazer o seguinte. Primeiro, eu vou considerar que o devedor desse processo, por não ter pagado as contas cuja quitação ele assumira, se tornou depositário infiel, e, sendo assim, vou determinar sua prisão (uma medida possível na época, hoje inexistente). Quanto à empresa telefônica, vou enviar-lhe um ofício perguntando por que ela não instala a linha identificada pela carta de arrematação que a senhora recebeu de nós. E seguimos a partir daí. Tudo bem?


A professora concordou, mostrando-se deveras satisfeita com o desfecho, e retirou-se.

O jovem juiz, porém, não estava nada esperançoso muito menos satisfeito.


“Que coisa! Está na cara que nada disso vai adiantar. O devedor nem vive em Campinas, ele reside em São Paulo. Teremos de expedir uma carta precatória executória para uma das JCJs de lá, quer dizer, nem vamos controlar a prisão diretamente, ficaremos na dependência deles. Ademais, a polícia de SP, tendo milhares de outras coisas mais importantes, graves ou urgentes para fazer, com certeza não vai dar a mínima bola para uma ordem de prisão vinda numa carta precatória trabalhista oriunda de uma comarca do interior. Por outro lado, a TELESP, quando receber meu ofício, decerto responderá alegando ser impossível instalar a linha, citando um cipoal de normas contidas em portarias, regulamentos e decretos. Na rotina dessas repartições, a pirâmide de Kelsen funciona de maneira invertida: é primeiro a portaria, depois o regulamento, depois o decreto e, se sobrar algum espaço, entra a lei. Constituição, ali, nem pensar, não serve nem para enfeite. E isso irá gerar uma discussão que tomará mais tempo que o tal plano de expansão!”. Voltou para sua casa aquela noite decepcionado consigo mesmo, sentindo-se um completo inútil.


O tempo passou, a rotina diária impôs seu ritmo, de sorte que o jovem magistrado momentaneamente olvidou o assunto. Pouco mais de um mês depois, porém, ao cruzar com o Diretor de Secretaria, lembrou-se do caso:


JM: Fulano, sabe aquele caso da professorinha que havia arrematado um telefone?


DS: O caso da professorinha? Sim, claro!


JM: O que virou aquilo? Teve alguma novidade?


DS: Teve sim.


JM: O quê?


DS: O devedor, cerca de duas semanas depois, veio até a Junta e pagou todas as contas atrasadas, pois disse que a polícia estava ficando de campana perto de seu apartamento, e ele não queria ser preso; a Telesp, assim que recebeu o ofício do Sr., cuidou de imediatamente instalar a linha telefônica na casa da professora.


JM: Nossa! A professorinha ficou contente, então?


DS: Ficou tão contente que semana passada ela esteve por aqui e arrematou outro telefone!

 

Manoel Carlos Toledo Filho é Desembargador do Trabalho (TRT 15/SP), Doutor em Direito pela USP e Professor Universitário.


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