POR OCASIÃO DO LANÇAMENTO DE SUA PRIMEIRA TRADUÇÃO PARA O
PORTUGUÊS[1]
-RICARDO ANTONIO LUCAS CAMARGO-
A tradução para o português da “Teoria comunista do Direito”, de Hans Kelsen – desde o século passado vertida ao espanhol e ao italiano -, é auspiciosa a mais de um título, porque, a rigor, mostra como se pode realizar uma crítica respeitosa, enfrentando eventuais inconsistências de mérito nos argumentos, em lugar de se realizar uma discussão sobre aspectos periféricos, quanto às características pessoais de quem enuncia a visão criticada, como se tornou, infelizmente, comum em nossos tempos.
Não é casual, aliás, que o caráter respeitoso da crítica tenha, como salientou Mario G. Losano em artigo específico sobre o caso, sido apto a conduzir o autor a incômodos com as autoridades americanas, para as quais, sob a inspiração da campanha movida pelo Senador republicano Joseph McCarthy, quem não desqualificasse pura e simplesmente os soviéticos seria, à saída, suspeito de simpatias pelo comunismo.
Quem estudou Direito no Brasil enquanto existiu a URSS poucas informações tinha acerca do que poderia ser o pensamento jurídico comunista, embora este dado fosse essencial, já que era um período em que proposições que em que se não reconhecesse a marca dos valores da Igreja ou dos EUA eram tarjadas como propaganda dos vermelhos com muita facilidade, e podiam ao seu enunciador acarretar sérios problemas com as autoridades.
A fonte mais próxima era a compilação feita por Umberto Cerroni dos textos dos juristas soviéticos, vertidos ao francês, bem como os comentários que o juscomparatista René David dividiu com John Hazard sobre o Direito soviético.
Todas essas obras, entretanto, são posteriores ao trabalho de Kelsen cuja tradução é presentemente trazida e ligeiramente comentada nesta breve participação, e, para escrevê-la, serviu-se de uma coletânea em inglês, publicada em 1951, prefaciada pelo já mencionado John Hazard.
Tendo bem presente a distinção entre o direito positivo, enquanto referencial de conduta, e a teoria do Direito, enquanto o pensar sobre o direito positivo, escrevendo em uma época em que se iniciava a Guerra Fria, Kelsen procura escandir o pensamento jurídico soviético, tomando por base a compreensão os pontos de partida deste na obra de Marx e Engels – que, se não chegaram, no sentido preciso do termo, a elaborar uma teoria jurídica, não deixaram de refletir sobre o Direito e o Estado – e na derivação política de Lenin.
Discute o pressuposto central de que, no pensamento marxiano, o Estado e o Direito seriam determinados pela produção econômica e as relações sociais dela decorrentes, em que aquele seria a máquina coercitiva voltada à manutenção dos conflitos de classe, entre dominantes e dominados, nos limites da ordem, e as respectivas derivações, com os problemas de ordem conceitual que daí decorrem, como, por exemplo, a secundarização do papel do direito na diferenciação dos poderes que cada qual que se relacione, no plano dos fatos, com as coisas teria sobre elas, por pressupor tal visão que o direito, no caso, apenas declararia uma situação que já fora definida pelas relações de produção, ou o tratar o direito e a moral como “ideologia” (no sentido forte, segundo a distinção apresentada por Karl Mannheim em seu “Ideologia e utopia”) em razão do que a seu respeito dissessem os “ideólogos”, o que confundiria o “discurso sobre o direito”, a “teoria do Direito”, com o “discurso do direito”, em que se põem efetivamente os comandos do direito positivo.
Sem incidir no equívoco de dar como um bloco invariável e monolítico o pensamento jurídico soviético – algo que seria fácil e conveniente nos EUA, onde vivia aos tempos do macartismo, e que lhe teria poupado alguns dissabores -, realça as peculiaridades da produção de um Petr Ivanovich Stuchka, que caracterizava o Direito como um sistema de relações de produção e repartição dos frutos da economia, sob o ponto de vista das oposições entre as classes, de um Evgeny Bronislavovich Pashukanis, tratando as relações jurídicas como relações entre proprietários de mercadorias, de um Mikhail Reisner, adotando a ideia de um “Direito intuído de classe”, que corresponderia às ideias normativas presentes na “consciência jurídica revolucionária da classe trabalhadora”, esforçando-se, todos eles, em elaborar uma teoria jurídica que fizesse frutificar os pressupostos dos pensadores fundantes do regime, para depois indicar a degeneração, em especial, mas não somente, na obra de um Andrei Vyshinshy, em um mero instrumento de legitimação intelectual dos desígnios da burocracia dominante na URSS.
Ao lado da exposição e discussão crítica de cada um dos teóricos soviéticos, suscita alguns temas que estão presentes na reflexão hodierna, quanto à amplitude maior do Direito em relação aos objetivos econômicos do que pensam, em seu pressuposto comum, liberistas – recordando a distinção feita por Benedetto Croce e adotada na Itália, entre o “liberismo” como a doutrina que identifica a liberdade no deixar o funcionamento da economia ao sabor dos movimentos da oferta e da procura e o “liberalismo” como a doutrina que identifica a liberdade com o poder autodeterminar-se prevendo as ações do Poder Público – e marxistas, embora divirjam quanto ao meio de se obter a máxima satisfação das necessidades de todos, os primeiros, pela economia livre, os segundos, pela planificação, à inadmissibilidade de redução do direito ao direito privado, em especial pelo avanço do constitucionalismo e pela identificação do Estado ao ordenamento jurídico, à ausência de base científica para a negação de personalidade ao indivíduo no âmbito internacional – tese que contradiz mesmo a posição tradicional entre os internacionalistas ocidentais, e veio a ser albergada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos quando da passagem, por ali, de um não-kelseniano, o Professor Antonio Augusto Cançado Trindade -, e, principalmente, a questão da degeneração do trabalho do cientista em instrumento da autoridade, da sua conversão em mera ferramenta de eficientização do poder, e que evoca uma análise que certa vez fiz de uma película dirigida por Stanley Kramer, logo após o declínio do macartismo, intitulada “O vento será tua herança” e se casa com a reflexão que fecha esta obra, em que a pena de Kelsen nos oferta uma das mais candentes advertências contra a predeterminação das conclusões a que tenha de chegar qualquer estudioso.
Depois de resumir a película em questão, que versava um caso verídico, em que um professor numa escola pública situada num município profundamente religioso no Tennessee fora processado criminalmente por ensinar a teoria da evolução de Charles Darwin, observei que, quando a conclusão já está dada, quaisquer fatos que a tornem inviável são tidos, por presunção absoluta, como falsos, e evoquei Max Weber e Washington Peluso Albino de Souza como exemplos dos que combateram este tipo de postura, denominada “viés de confirmação”, e que põe em pauta um dilema que deveria ser falso, qual seja, o de o aprofundamento do estudo de qualquer matéria poder levar a conclusão de que a pessoa que esteja em posição hierárquica superior tenha incidido num erro de percepção.
“A condição deplorável da teoria jurídica soviética, degradada em lacaia do governo soviético, deveria ser um severo alerta aos cientistas sociais de que a verdadeira ciência só é possível em condições em que ela é independente da política” [KELSEN, 2021:258].
Além da óbvia identificação do autoritarismo consistente em submeter o conhecimento à conveniência política, como se verificou na URSS durante o estalinismo e é ilustrado no romance de Arthur Koestler “O zero e o infinito”, e na Alemanha nazista, como ilustra Thomas Mann no seu “Doutor Fausto” – ambos, embora obras de ficção, com o valor de testemunho ocular dos respectivos autores -, outros fatores determinantes da hierarquia, como a dependência econômica – basta recordar, nos EUA, o corte de financiamento de pesquisas que levassem à conclusão de que um produto posto no mercado poderia ser prejudicial à saúde ou à segurança do consumidor, ou o desencorajamento, inclusive com a demissão, de repórteres investigativos que viessem a descobrir algum fato inconveniente a algum anunciante -, a autoridade familiar – uma pesquisa que um filho faça que ponha em xeque uma crença arraigada no respectivo pai, e que seja, para este último, referencial de toda a sua existência em sociedade, pode ser vista pelo genitor ou por quem estabeleça a autoridade como algo a ser preservado a qualquer custo como uma autêntica injúria, quando não desonra -, ou mesmo religiosa – em meio à explicação das equações que lastreavam as teses do tratado sobre a Revolução dos orbes celestes, Copérnico, integrante do clero católico, entremeou vários louvores à autoridade papal e diatribes aos hereges – não desempenham papel de pouca monta.
Não se conseguiu, ainda, viabilizar qualquer experiência de vida social sem hierarquia – por sinal, na obra ora resenhada, Kelsen aponta para as objeções formuladas aos estudos que serviram de base a Engels quando este escreveu “A origem da família, da propriedade privada e do Estado” -, e o fracasso da Comuna de Paris, de 1871, de fundo anarquista, é um exemplo disto, e o papel das hierarquias, por mais artificiais que sejam, no estabelecimento dos liames sociais, é de tal monta que, numa sociedade marcada por desigualdades profundas e muito propensa, por isto mesmo, ao vicejar de relações essencialmente autoritárias, vem a ser um ato de extrema coragem moral sustentar a aparente obviedade de que o dever de obediência e acatamento aos superiores se mostra impotente para determinar a verdade ou falsidade de uma narrativa ou uma descrição.
Merece transcrição o texto com que Kelsen encerra a obra, salientando que a independência da ciência haverá de ser não só em relação à política estatal, mas em relação a qualquer manifestação de mando:
“A condição deplorável da teoria jurídica soviética, degradada em lacaia do governo soviético, deveria ser um severo alerta aos cientistas sociais de que a verdadeira ciência só é possível em condições em que ela é independente da política” [KELSEN, 2021:258].
Esta, pois, a minha singela contribuição para estimular a leitura desta obra riquíssima, que precisa ser conhecida tanto por adversários quanto por entusiastas da Revolução Russa, quando nada, para que se não diagnostique doença em pessoa sadia, ou vice-versa...
[1] O presente texto, com poucas modificações, foi a base do pronunciamento do autor quando do lançamento da tradução para o português da obra de Kelsen referida no título, documentado no elo https://youtu.be/EhmFxkD83kc, acessado em 20 maio 2021.
KELSEN, Hans. Teoria comunista do Direito. Trad. Pedro Davoglio. São Paulo: Contracorrente, 2021.
Ricardo Antonio Lucas Camargo - Professor nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professor Visitante da Università degli Studi di Firenze – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP.
Parabéns, Dr. Ricardo, pela divulgação da obra.