- Sebastião Staut -
Neste janeiro meu pai, se vivo fosse, completaria 93. Há mais de trinta anos que sua falta deixa o mundo menos atencioso, menos gentil, menos intenso. Aproveitei a lembrança especial que a data sempre me traz para revisitar sua biblioteca, que herdei, já que a lhaneza de trato e a especial atenção que tinha para com todas as pessoas, lamentavelmente, não consegui herdar.
É sem dúvida uma boa biblioteca, notadamente quanto às obras clássicas da cultura ocidental. Nela se encontram os títulos referenciais dos gregos, dos latinos, a filosofia, os romances, livros sobre economia política, arte, literatura brasileira, história e ciência, uma edição completa da Larousse com seus anuários de atualização, coleções completas dos romances Saraiva, dos clássicos Jackson, uma linha seleção generosa dos dicionaristas de renome, obras em inglês e francês, ou seja, uns estimados oitocentos e tantos volumes dentre os quais, e não poderia ser de outro modo, também se encontram alguns exemplares de menor erudição, mais populares, e que nem por isso deixam de me agradar e surpreender, sempre que os encontro na miríade de edições dispostas aleatoriamente nas estantes, escaninhos, mesas e cadeiras. Uma bagunça multicultural, cujo plano de organização é por mim religiosamente adiado, ano após ano, em disciplinada e voluntariosa repetição da frase: ano que vem eu arrumo isso.
E assim, entre uma corrida de olhos na CIROPEDIA de Xenofonte, em OS FASTOS de Ovídio, em OLIVER TWIST de Dickens, nos SOBRADOS E MUCAMBOS de Gilberto Freyre, eis que me deparo com um daqueles exemplares acima referidos, aqueles de menor reputação dentre os doutos, mas que sim, surpreendem e muitas vezes agradam. Ao lado do imperdível A CURA PELO LIMÃO, encontro e ponho-me a ler, já pela segunda vez, COMO FAZER AMIGOS E INFLUENCIAR PESSOAS, de Dale Carnegie.
Meu primeiro contato com essa icônica obra veio ainda na adolescência, quando então tinha vivo interesse, hoje muito mitigado, em fazer amigos e influenciar pessoas. Foi um achado. A capa, o título, tudo me fascinou. A oportunidade de encontrar a palavra mágica, o abre-te Sésamo das portas do mundo, fez com que o adolescente tímido que eu era devorasse o livro, que não é pequeno, em uns dois dias.
Nele estavam as sementes de um pouco de tudo o que viria a entupir, como atualmente acontece, as livrarias e as redes sociais: a mentoria, o coaching, a auto-ajuda, a neurolinguística, a fórmula para o sucesso, a cura pela atitude e quejandas.
Mas há sutis e importantes, muito importantes, diferenças, entre esse livro, meio que germinal - no sentido inaugural da palavra, sem qualquer referência ou semelhança possível, como resta claro, à novela de Émile Zola - e as rematadas porcarias que se podem atualmente comprar em lojas ou market places com propósito semelhante.
COMO FAZER AMIGOS E INFLUENCIAR PESSOAS é um livro corretamente escrito, bem estruturado, interessante, que prende o leitor com seus exemplos, suas anedotas, suas criativas e improváveis associações entre o pensamento positivo e a secreção de bons hormônios, sua promoção do conceito empático, com o bom astral do autor e a proposta de enfrentar problemas cotidianos de forma otimista e encorajadora. Escrito nos Estados Unidos em 1936, alguns anos após a grande depressão e alguns anos antes do início da Segunda Guerra Mundial, vendeu milhões de exemplares em todo o mundo, deixou seu autor muito rico e, porque não dizer, agradou a muitas e muitas pessoas que, até hoje, guardam interesse em sua leitura, mantendo a obra em catálogo, continuamente, por quase um século desde sua primeira edição.
Seria eu um fã do livro? Não, não sou. Teria interesse em lê-lo novamente, por completo? Não definitivamente não.
Porém, meu reencontro casual com esse livro trouxe a inquietação e a consequente reflexão que ora compartilho com as amigas e amigos leitores da Revista Pub. A obra prova que é possível fazer literatura popular, no grande gênero auto-ajuda que busca resultados econômicos, de maneira bem escrita, sem discursos de ódio, sem exploração da ignorância alheia, sem embromações místico-religiosas, sem inconfessáveis interesses ocultos e sem ser pena de aluguel.
Não sei se foi o avanço da tecnologia e a universalização de seus instrumentos, o surgimento das mídias sociais, refluxo da extrema-direita reacionária, problemas no sistema educacional, realmente não sei o que nos trouxe ao estado de coisas em que estamos e no qual, quase sempre, os livros mais expostos nas livrarias e, portanto, os mais vendidos, são rematadas porcarias, “escritas” por mãos de aluguel para lucro de autores picaretas da pior extração, a veicular fake news, ideias de ódio, desinformação, preconceitos, intolerância e, ainda por cima, terrivelmente mal escritos, verdadeiras ofensas à gramática e a qualquer padrão, mesmo os mais inferiores, de técnica e estilo.
Nada contra a literatura popular, muito antes pelo contrário. Mas é preciso nutrir mais cuidado, atenção e respeito aos nossos leitores.
Aguentar os Marçals da vida, como se diria popularmente, tá osso...
NÃO SE FAZEM MAIS COACHS COMO ANTIGAMENTE!
Sebastião Vilela Staut Júnior é advogado, Procurador do Estado de São Paulo aposentado, associado do IBAP e contista/cronista acidental. Publica sua coluna mensalmente todo dia 26.
Parabéns meu irmão, coluna primorosa, não concordamos sempre em nossos pontos de vista, mas meu sentimento, em relação a essas fórmulas de sucesso e a ignorância geral, é o mesmo.
Suas referências ao papai me emocionaram, ele foi um homem muito inteligente,de uma gentileza e educação que hoje fazem muita falta
Obrigada