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A tomada da República

-ZECA SAMPAIO-


“Como podes comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal ideia nos é estranha. Se não somos donos da pureza do ar ou do resplendor da água, como então podes comprá-los? (...) De uma coisa sabemos. A terra não pertence, ao homem: é o homem que pertence à terra, disso temos certeza”.

Chefe Seattle


Um dia, no portão de minha casa, um transeunte jogava um pacote amassado na calçada. Diante de meu questionamento se ele iria deixar aquele lixo ali, sua reposta foi: “que é que tem? Aqui é público”. Como quem diz que eu não poderia reclamar porque não era na minha propriedade privada, mas na “terra de ninguém”.


O espaço público como “terra de ninguém” é um correlato do espaço público pertencente à autoridade, seja lá quem ela for, o rei, o presidente, o prefeito, o diretor da escola, o guarda, o coronel... Um lugar que só podemos ocupar se tivermos autorização de alguém – que abra o portão do parque – e ao qual nos apresentamos, ou de forma prepotente, ou de forma humilde/humilhado. Não se espera de ninguém que entre em uma delegacia, naturalmente, como se estivesse entrando em sua (nossa) casa.


Quando criança, antes de 64, a rua era para mim um espaço livre. Lugar de brincadeiras, caminhadas, atividades das mais diversas, sem a supervisão de um adulto e/ou responsável. Depois, as coisas ficaram um pouco diferentes. Andar na rua tinha um pouco de arriscado, um pouco de estar invadindo um espaço alheio, uma expectativa de que a qualquer momento a autoridade poderia chegar e perguntar o que eu estava fazendo ali. Nesse tempo, os donos das ruas, para mim, eram os militares, aqueles que estavam no poder e decidiam quem podia e quem não podia circular por aí.


Imagem - A Tribuna

Foi na época da retomada da democracia que, já iniciando a vida adulta, me dei conta de que a rua era nossa. Integrando o “Abre mais que agora vai”, grupo anárquico de teatro de rua e, logo depois, saindo no “Vai Quem Qué”, bloco de rua carnavalesco, até hoje ativo, acampando pelas praias do litoral ou simplesmente circulando pelas ruas e praças com meus amigos e contestando o direito de me dizerem onde posso ir – isso é fácil para um branco privilegiado, sei que a realidade é bem diferente para outras pessoas –, ou ainda, participando das manifestações pelo fim da ditadura, foi que aprendi que o espaço público não é da autoridade, nem é de “ninguém”.


“Que tempos são estes, em que temos que defender o óbvio?” Diria titio Brecht, mas é preciso explicar que o espaço público é o que diz o nome, de todos nós. A rua não é do prefeito, do guarda, ou dos carros, a rua é nossa. Vamos a ela. É, mais uma vez, tempo de retomar o que nos foi retirado, antes mesmo da pandemia, pela ascensão de forças conservadoras, privatistas, antidemocráticas.


Nossa educação tem muitas falhas, geralmente propositais, mas a meu ver uma das mais importantes é a de não ensinar o básico das regras do jogo. O cidadão entra no jogo de futebol e, logo na primeira bola que recebe, pega com a mão. Assim, somos nós saindo da escola para a vida em sociedade. Desconhecemos o básico da forma como o jogo funciona. Em nossos bancos escolares não há sequer menção à constituição, às leis e sua interpretação, ao significado de soberania, poder público, participação democrática.


Não seria de se esperar que as pessoas tivessem qualquer noção de res pública. Muito menos saibam diferenciar o significado na vida delas de público e privado. A propriedade privada, naturalizada a duras penas, aparece para a maioria dos adultos de nossa sociedade como uma condição primária da convivência humana. Como se todos nascessem com uma categoria a priori, o sentimento de possuir exclusividade sobre as coisas materiais. Quem pensa assim, nunca prestou atenção na dificuldade que é ensinar para uma criança que ela não deve mexer no brinquedo do irmão, ou do coleguinha.


Da mesma forma, a destruição da noção de res pública, como coisa de todos, é um forte trabalho ideológico educacional de encobrimento. Passa pela noção de que as coisas são doação divina, mas não para o uso de todos, apenas para o uso daqueles que ele escolhe como agraciados. Segue pela proibição de entrada em espaços públicos sem a devida autorização – crianças, mesmo tendo o direito constitucional à educação, não podem entrar na escola se não estiverem de uniforme. Termina pela experiência de que todo espaço tem um dono, mesmo quando deveriam ser abertos como acontece com praias, campo improdutivo, florestas em áreas de preservação e ruas com portões nas cidades.


O espaço público não se reduz ao mundo físico. Um exemplo de espaço público privatizado, que as pessoas nem sequer sonham em sentir como delas, é a mídia. O espaço aéreo, com suas ondas eletromagnéticas e o seu correspondente espaço de comunicação, assim como o espaço da mídia digital, estão outorgados a meia dúzia de “donos”, ao invés de haver garantias de que permaneçam ao alcance de todos e não sejam divididos em cercados privados, latifúndios do ar.


O próprio país é visto por uma grande maioria como propriedade do presidente. Aquele que fará tudo melhorar, ou piorar, de acordo com sua competência, incapacidade, honestidade ou corrupção.


A mesma coisa acontece com o poder legislativo, que poucas vezes é lembrado como a casa do povo, sempre um condomínio exclusivo de um grupo bastante reduzido e pouco representativo da população. Esta, repetidas vezes entrega o seu espaço de participação política a indivíduos que evidentemente e absolutamente não estão junto a ela, mas atuam por interesses bastante privados.


Sobre o poder judiciário nem é preciso dizer muito, tão inacessível, tão reservado aos “doutores”. De onde vêm os juízes? Em que planeta são encontrados?


Assim, retomar as ruas, com manifestações políticas, com arte, com a vida nas cidades, devia ser um primeiro passo. Depois, retomar as praias, os campos, as florestas, a comunicação, os serviços públicos, as escolas, a polícia, a política, os cargos e responsabilidades da administração pública. Um longo caminho tem que começar por um primeiro passo.


Enquanto as escolas, e os parques, precisarem de grades, enquanto a rua for “terra de ninguém” e a política território particular, não existe realmente a república, não existe um país soberano e um povo que sente que é dono de sua pátria.


Tomar as ruas, é também tomar a república, é tomar o país de volta, ou talvez pela primeira vez, em “nossas” mãos. É, antes de mais nada, se responsabilizar e se coletivizar.


Temos muito a aprender.

 

ZECA SAMPAIO, dramaturgo e romancista, é associado ao IBAP.


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1 comentário


nicolealuz
01 de set. de 2021

Excelente reflexão! Obrigada por compartilhar sua experiência e observação.

Realmente temos muito o que aprender.

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