- Sebastião Staut -
Era o Brasil de Getúlio Vargas, do Estado Novo.
Embora fossem tempos de guerra, esse fato não fazia muita diferença, então, pro seu Ladislao. Imigrante polonês, criado como agricultor nas duríssimas estepes frias de solo negro nos arredores da Cracóvia, via no país que o acolhera uma esperança de vida além da guerra, do frio, da penúria e do trabalho que quase não remunerava. Além dos muitos dias de sol que desfrutava no seu novo recanto, tinha conseguido, ao custo de muita labuta é bem verdade, um pedaço de terra na então periferia da metrópole paulistana, bairro do Jabaquara, onde construiu sua casa de três cômodos e começara a preparar o terreno dos fundos para erguer umas casinhas de aluguel. Seriam uma renda, uma segurança para a família, pois seu Ladislao, embora duro como uma rocha, operário incansável, já ia sentindo o peso da idade e dos anos de trabalho sem descanso.
A gleba do grande quintal, como era comum naquela época nos arrabaldes citadinos, estava coberta com várias árvores. Paus-ferro, pitangueiras, grumixamas, calistemos, goiabeiras, flamboiâs... De tudo havia um pouco. Cortar aquelas árvores para dar lugar às casinhas entristecia muito seu Ladislao. Nem mesmo um coração castigado pelas vicissitudes da vida, pela guerra, pela pobreza, conseguia ficar alheio àquela beleza tão própria do Brasil, a diversidade de plantas, de insetos e de bichos que, nem muito de longe, tinha visto na Europa em seus vários anos de vida no campo.
Mas a necessidade era a necessidade, e era preciso progredir para dar melhores meios à família. Ladislao pensou em tirar o menos possível, mas ainda assim era preciso tirar muitas árvores. O trabalho de retirar aquela vegetação, que a peãozada para tanto arregimentada executava com afinco, já por si não agradava o velho polônes, e ainda foi piorado mercê de um achado que tocou fundo em sua alma de imigrante agradecido. No tronco de um manacá, logo na primeira forquilha, na altura de seu ombro, despontava, majestosa, uma CATTLEYA INTERMEDIA GRAHAM, nossa popular orquídea lilás.
Impossibilitado de ignorar a beleza e a graça, Ladislao se incumbiu da tarefa de, cuidadosamente, remover a orquídea do tronco, acomodá-la em um pequeno vaso e chamar da casa sua nora, Lorette, a quem apenas pronunciou a frase: CUIDA DELA PRA MIM.
A delicadeza do ato encontrou eco no coração enorme de Lorette, e a orquídea viveu por algumas décadas na casa do Jabaquara, motivo de reiterada admiração e frequentes elogios dos passantes da calçada.
Mas, a vida e suas necessidades, mais uma vez e sempre, encontraram o destino da admirada orquídea, para mais uma mudança. Luisete, filha de Lorette, iria se casar. Lorette estava viúva, pois Luís, o filho de Ladislao, já falecera. A casa iria ficar muito grande só para ela, e por isso mudou-se em direção a uma outra casa, menor mas também florida, desta feita no Planalto Paulista. A “orquídea do vô Ladislao” encontraria um novo lar.
Outras décadas se passaram, a doença veio encontrar Lorette, no curso de sua longa vida de cuidados e delicadezas para com todos que a cercavam. Pressentindo não mais poder dar à orquídea os necessários cuidados, Lorette chamou por sua filha e repetiu o pedido que tempos atrás lhe fizera Ladislao: CUIDA DELA PRA MIM.
Mais uma mudança chegava na vida da flor. Iria agora às alturas, de uma casa térrea para o décimo-oitavo andar de um apartamento, do outro lado da cidade, no Tatuapé.
Houve apreensão. Uma frágil planta, uma flor, tanto tempo, tantas mudanças, as perspectivas não eram as melhores para a “orquídea do Vô Ladislao”.
Mas Luisete é filha de Lorette, e nasceram para cuidar. Passados mais de sessenta anos e muitas mudanças desde que descoberta, no tronco de um manacá nos então confins do Jabaquara, a orquídea do Vô continua não só plena de vida como linda, exuberante, orgulhosa, espalhando seus lilases e tomando de assalto a sensibilidade de todos que a vêem.
Eu tenho a sorte de ser o marido da Luisete e, portanto, daqui de casa, poder olhar e usufruir da orquídea do Vô e sua indisfarçável beleza, todos os dias, quando é época de florada como agora.
Quem dera que nós, humanidade, pudéssemos cuidar do que restou da nossa natureza com o mesmo empenho e a mesma delicadeza, da mesma forma que fizeram Ladislao, Lorette e Luisete, para podermos então pedir aos que virão depois de nós: CUIDA DELA PRA MIM!
Sebastião Vilela Staut Júnior é advogado, Procurador do Estado de São Paulo aposentado, associado do IBAP e contista/cronista acidental. Sua coluna permanente na Revista PUB Diálogos Interdisciplinares é publicada sempre no dia 26 de cada mês.
Linda e comovente estória. Nós, humanos, precisamos aprender a arte de cuidar, não só de orquídeas, mas de toda a natureza.