-JOSÉ NUZZI NETO-
1. DECISÃO RECENTE DO STJ
A Terceira Turma do STJ deu provimento ao Recurso Especial nº 1.570.452, para assentar que a cessão do crédito não implica a alteração da natureza dele.
A via excepcional fora intentada por fundo de investimentos que, cessionário de crédito decorrente da dívida condominial de um espólio, não se conformava a decisão do TJRJ; este entendera que, malgrado o crédito já estivesse em execução quando adquirido pelo fundo, o cessionário deveria promover-lhe a habilitação em inventário, de modo a concorrer com os demais credores.
Colhe-se, no acórdão local:
“Uma vez cedida, é evidente que a dívida não tem mais a mesma disciplina e tutela legal. O bem já está a salvo e o credor é um credor comum, sem privilégios processuais subjetivos, pois não é mais um condomínio”.
O Relator do REsp, Min. Villas Bôas Cueva, divergiu da origem e seguiu o rumo traçado pelo STF no Tema 361 – Transmudação da natureza de precatório alimentar normal em virtude de cessão do direito nele estampado –, em que se definira que a cessão de crédito não importa na alteração da natureza desse crédito. Assim se exprimiu o Relator, seguido pela unanimidade de seus pares:
"Semelhante situação ocorre na hipótese dos autos, haja vista que a transmutação da natureza do crédito cedido viria em prejuízo dos próprios condomínios, que se valem da cessão de seus créditos como meio de obtenção de recursos financeiros necessários ao custeio das despesas de conservação da coisa, desonerando, assim, os demais condôminos que mantêm as suas obrigações em dia".
Colhe-se ainda, no voto condutor, a observação de que somente se altera a natureza do crédito cedido por disposição legal expressa, como, pontuou, no caso do § 4º do art. 83 da Lei nº 11.101/2005, pelo qual “os créditos trabalhistas cedidos a terceiros serão considerados quirografários”.
As razões recursais invocavam, ainda, as normas constantes dos artigos 286 e 287 do Código Civil de 2002 – a cessão de crédito opera a transmissão da obrigação sem que ocorra a extinção ou modificação de sua natureza e conteúdo – e o art. 567, II, do Código de Processo Civil de 1973 – o cessionário pode prosseguir com a execução iniciada pelo cedente sem que tenha que levar o crédito à habilitação em concurso de credores.
2. A SECURITIZAÇÃO DA DÍVIDA PÚBLICA
De algum tempo a esta parte, algumas entidades federativas brasileiras promovem a securitização de sua dívida pública. No Estado de São Paulo, promulgou-se a Lei nº 13.723, de 29 de setembro de 2009, que:
(i) estabeleceu a constituição da Companhia Paulista de Securitização – CPSEC, “... sociedade de propósito específico, sob a forma de sociedade por ações com a maioria absoluta do capital votante detida pelo Estado, vinculada à Secretaria da Fazenda, tendo por objeto social a estruturação e implementação de operações que envolvam a emissão e distribuição de valores mobiliários ou outra forma de obtenção de recursos junto ao mercado de capitais, lastreadas nos direitos creditórios a que se refere o artigo 1º desta lei” (artigo 8º);
(ii) determinou que a sociedade “... de propósito específico a que se refere o ‘caput’ deste artigo não poderá receber, do Estado, recursos financeiros para pagamento de despesas de pessoal ou de custeio em geral, a fim de não se caracterizar como empresa dependente do Tesouro, nos termos da Lei Complementar federal no 101, de 4 de maio de 2000” (artigo 8º, parágrafo único);
(iii) permitiu a “... abertura do capital social da sociedade de propósito específico mencionada no artigo 8º desta lei, de acordo com as normas estabelecidas pela Comissão de Valores Mobiliários, desde que mantida, em caráter incondicional, a maioria absoluta do respectivo capital votante” (artigo 9º), autorizado ainda “... o Poder Executivo ... a abrir crédito especial, até o limite de R$ 100.000,00 (cem mil reais), destinados à integralização do capital social da sociedade por ações mencionada no artigo 8º” (artigo 11);
(iv) permitiu à CPSEC ceder, “... a título oneroso, .... os direitos creditórios originários de créditos tributários e não tributários, objeto de parcelamentos administrativos ou judiciais, relativos ao ... ICMS, ao ... ITCMD, ao ... IPVA, às taxas de qualquer espécie e origem, às multas administrativas de natureza não tributária, às multas contratuais, aos ressarcimentos e às restituições e indenizações” (artigo 1º);
(v) deixou expresso que a cessão não envolve os créditos, mas “... o direito autônomo ao recebimento do crédito e somente poderá recair sobre o produto de créditos tributários cujo fato gerador já tenha ocorrido e de créditos não tributários vencidos, efetivamente constituídos e inscritos na dívida ativa do Estado ou reconhecidos pelo contribuinte ou devedor mediante a formalização de parcelamento” (artigo 1º , § 1º);
(vi) definiu limite mínimo para o preço da cessão: “... não poderá ser inferior ao do saldo atualizado do parcelamento, excluídos juros e demais acréscimos financeiros incidentes sobre as parcelas vincendas” (artigo 3º);
(vii) assentou que a cessão “... não modifica a natureza do crédito que originou o direito creditório objeto da cessão, o qual mantém suas garantias e privilégios, não altera as condições de pagamento, critérios de atualização e data de vencimento, não transfere a prerrogativa de cobrança judicial e extrajudicial dos créditos originadores” (artigo 2º);
(viii) e fixou a definitividade da cessão, “sem assunção, pelo Estado, perante o cessionário, de responsabilidade pelo efetivo pagamento a cargo do contribuinte ou de qualquer outra espécie de compromisso financeiro que possa, nos termos da Lei Complementar federal no 101, de 4 de maio de 2000, caracterizar operação de crédito” (artigo 6º, parágrafo único).
Os negritos não constam do original; foram aí postos para destacar que a lei opera distinção entre os créditos inscritos na dívida ativa e direitos creditórios; estes constituiriam direito autônomo ao recebimento do crédito, originários de créditos tributários e não tributários.
3. O CURIOSO CASO DOS CRÉDITOS CEDIDOS
Como se viu no primeiro tópico, STF e STJ consideram que a cessão não desnatura o crédito: ainda que objeto de cessão, o condominial persiste condominial, o alimentar preserva essa natureza.
No caso do débito para com o condomínio edilício, a contrapartida é o crédito, oriundo de um negócio jurídico; quando se passa ao crédito alimentar, o crédito deriva de uma sentença judicial, passada em julgado e liquidada. Em ambas as hipóteses, trata-se de obrigação pecuniária.
Já nas operações de securitização, pretende-se que não haja cessão do crédito, mas do direito à percepção futura das parcelas com cujo pagamento o devedor-contribuinte se comprometeu. É dizer: haveria o direito de crédito, titularizado pela Fazenda, e o direito à percepção do valor resultante da satisfação do crédito, este passado à CPSEC e que lastreia a emissão de debêntures.
Não há dúvida de que a solução é engenhosa. Motiva-a a impossibilidade legal de cessão pura e simples da dívida ativa. Com todo respeito, porém, a quem haja engendrado essa operação, seu artificialismo salta aos olhos: o crédito público passa a ter um gêmeo, este não público, passa a ser dois, ou a ter duas faces: uma pública, que persiste em favor do Erário, e outra não pública, que se passa a uma empresa (pública, aliás); e esta o usa como lastro para emitir novos títulos de dívida. A Fazenda continua com a obrigação de cobrar as parcelas (de seu crédito!), conforme acordado com o contribuinte; e, todavia, não contabiliza o numerário recebido, não há ingresso, pois o fluxo de recebimento é repassado para a companhia securitizadora e, ao cabo, aos tomadores das debêntures.
Júlio Marcelo de Oliveira, membro do Ministério Público de Contas que atua no TCU, opõe fundadas ressalvas a essa operação:
“Diversos órgãos e entes, interessados na realização dessas operações livres dos rigores que a LRF exige para as operações de crédito, sustentaram perante o Tribunal de Contas da União que não se trataria de operação de crédito, mas de mera cessão do fluxo de caixa decorrente dos créditos da dívida ativa, como direito autônomo em relação à titularidade do direito de crédito, como se fosse possível separar o direito ao crédito do direito à percepção do valor resultante da satisfação do crédito, numa distinção artificial e sem conteúdo jurídico.”
(leia aqui - nossos os itálicos e os negritos)
Na sequência, adverte que, com essa bipartição, caracteriza-se o costeamento da Lei de Responsabilidade Fiscal:
“Não é demais lembrar: o conceito de operação de crédito trazido pela Lei de Responsabilidade Fiscal é muito mais amplo e abrangente do que o conceito clássico de operação de crédito e o legislador não fez isso por acaso ou capricho. Assim o fez ao prever a criatividade dos governantes na busca por fórmulas de obtenção de recursos no presente com o comprometimento da arrecadação futura.
Irrelevante se os fatos geradores já ocorreram, trata-se de arrecadação futura que está sendo objeto de uma troca intertemporal mediante a qual seu valor futuro é entregue no presente ao ente federado por alguém, mediante desconto de uma taxa de juros explícita ou implícita, tomando-se esse alguém credor do valor futuro.
Para a LRF, o que interessa é a essência da troca financeira intertemporal, não o possível desenho jurídico da operação. O desenho jurídico pode ser este ou aquele, conforme o que seja melhor para a realização bem sucedida da operação, mas nunca para evitar os ritos e requisitos da LRF.”
4. A RECENTE LEI PAULISTA
Com a Mensagem A-nº 021/2020, do dia 12 de agosto p.p., o Governador do Estado de São Paulo enviou projeto de lei, que tomou o nº 529 e veio a converter-se na Lei nº 17.293, publicada no Diário Oficial do Estado de 16/10/2020.
O texto legal é composto por quinze seções, que tratam desde a extinção de entidades públicas descentralizadas até procedimentos próprios para a PGE reconhecer a procedência de pedidos judiciais, deixar de contestar ou desistir de recursos, passando por alterações nos regimes da IPVA e do ICMS, instituição de Programa de Demissão Incentivada, alienação de imóveis públicos, concessão de serviço ou de uso de áreas, regulação e fiscalização de serviços públicos.
Na Seção VIII cuida-se da securitização: em um só artigo, promovem-se alterações e inclusões na já citada Lei nº 13.723, de 29 de setembro de 2009. Nesta, a par de mudanças pontuais, houve a inclusão de três artigos: 9º-A, 9º-B e 9º-C. Pelo primeiro, as entidades da Administração Direta e Indireta recebem autorização para a cessão de créditos ou direitos creditórios, originários de relações contratuais ou legais, à CPSEC, à CPP ou a fundo de investimento; no segundo, autoriza-se a CPSEC a firmar, com entidades da Administração Direta e Indireta do Estado, os instrumentos jurídicos específicos “para estruturar e implementar operações de securitização de interesse da Administração”; e o terceiro estende essa autorização para que operações similares sejam contratadas com os municípios do Estado de São Paulo.
Ou seja, malgrado a plausível arguição de inconsistências legais nos procedimentos de securitização, com a lei recém aprovada saem ampliados o escopo e a abrangência da cessão dos direitos creditórios, verdadeiros clones de créditos públicos.
Bem a propósito a manifestação de Élida Graziane Pinto, cuja qualificação acadêmica é notável e integra o Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo Fiscal:
“Falta transparência quanto aos fins pretendidos na securitização de dívida ativa (haja vista o frágil regime jurídico da CPSEC e sua baixa accountability), ...”.
5. NOMENCLADORES
A filosofia debate, desde sempre, a relação entre palavras e coisas. Nome é convenção ou é inerência?
“Crátilo afirma que Hermógenes não deveria se chamar assim, já que ‘Hermógenes’ significa ‘filho de Hermes’ e para fazer jus a esse nome, Hermógenes deveria ser uma pessoa rica e não estar em dificuldades financeiras, como era o caso do personagem.
Hermógenes, no diálogo, defende a posição do convencionalismo, isto é, que os nomes não têm nenhuma relação com as coisas e são completamente arbitrários, podendo ser mudados segundo a nossa vontade. Já Crátilo defende a posição naturalista de que a cada coisa corresponde o seu nome e conhecer o nome significa saber o que a coisa é.
Platão defende uma posição intermediária. Ele irá reconhecer que existe certo grau de convencionalismo, pois a mesma coisa pode ser chamada por nomes diferentes nas diversas línguas. Por outro lado, as pessoas não poderiam ficar trocando o nome das coisas à vontade, porque, nesse caso, a linguagem se tornaria impossível.”
Em cena famosa de peça idem, Julieta dá voz a essa inquietação: “O que há, pois, num nome? Aquilo a que chamamos rosa, com qualquer outro nome cheiraria igualmente bem”*.
Ted Chiang incorpora, a obra mais recente, conto denominado “Setenta e duas letras”, em que há referência a determinada corrente de pensamento para a qual “havia um universo léxico coexistente ao universo físico, e juntar um objeto com um nome compatível fazia com que as potencialidades latentes dos dois se realizassem. Tampouco havia um único ‘nome verdadeiro’ para determinado objeto: dependendo de sua forma, um corpo podia ser compatível com vários nomes, que eram seus ‘aptônimos’ ...”.** Daí o estudo da nomenclatura e a faina dos nomencladores.
Ficamos com Shakespeare: um crédito público o é ainda que outro nome se lhe dê, malgrado o engenho de nomencladores.
* “What’s in a name? That which we call a rose / By any other name would smell as sweet”. ** História de sua vida e outros contos – Ed. digital, 2016, Ed. Intrínseca.
JOSÉ NUZZI NETO É Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública, Procurador Autárquico (DAEE-SP) e Professor Universitário.
A questão tratada por José Nuzzi é de absoluta relevância para as finanças públicas e a crescente dívida pública. As pretensas alterações de nomenclatura visando alterar o seu substrato real não têm sequer valor jurídico, porquanto o Direito exige conhecer a natureza do próprio ato ou fato e reconhecer sua substância independente do nome que se lhe dê o texto legal. Aliás, esse desvio de débitos dos contribuintes pagadores de impostos, permitidos pela lei, acaba prejudicando o Erário público, pois os valores sequer ingressam no Tesouro e nos seus registros, sendo desviados diretamente para o sistema financeiro. A questão é contestada pela Auditoria Cidadã da Dívida Pública e faz parte da atual iniciativa de "#É hora de virar o jogo!".…
O que chama a atenção neste excelente texto do Prof. José Nuzzi Neto, é precisamente a contextualização da chamada "securitização da dívida ativa" na obsessão pela privatização como forma de "combater o déficit público", uma das tantas "novidades" não tão novas assim: pode-se ler, com proveito, o livro de 1926 de Agenor de Roure sobre o "Orçamento", no qual são referidas estratégias até hoje utilizadas a este pretexto, empregadas desde a época do Império.