-Ricardo Antonio Lucas Camargo-
Poucos temas, sob o ponto de vista político, são tão conflituosos quanto os debates em torno da relação entre o Estado e a economia, e, em razão disto, o equacionamento desses conflitos somente pode dar-se por uma forma: mediante o estabelecimento de critérios gerais pelo direito positivo e pelo assegurar a eficácia desses critérios gerais.
Recordando lição antiga do saudoso Professor Washington Peluso Albino de Souza em sua “Teoria da Constituição Econômica”, a despeito da existência de “modelos ideológicos puros” em relação ao dado econômico – “livre mercado”, “Estado empresário”, “propriedade privada”, “função social da propriedade” -, em especial onde as Constituições são fruto da presença dos mais variados interesses no momento da respectiva elaboração, os mais variados elementos vão terminar por se fazerem presentes no respectivo Texto, compondo, como um todo, o tratamento constitucional do econômico.
Em uma Constituição que se pretendia transição para o socialismo, como o texto original da portuguesa de 1976, a liberdade de iniciativa econômica estava assegurada como um direito individual; na Lei Fundamental de Bonn, de 1949, voltada à conformação de uma “economia social de mercado”, está reproduzida a célebre dicção contida na Constituição de Weimar, de 1919, “a propriedade obriga”.
O projeto que é estabelecido, no Brasil, em relação à conformação das relações econômicas, sob o ponto de vista material, tem como ponto de partida, segundo decidido pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade 234/RJ, relatada pelo Min. José Néri da Silveira, o artigo 170 e os incisos em que se desdobra.
Os modos, no Brasil, por que se vai dar a atuação do Estado na concreção desse projeto têm como referenciais os artigos 173, 174 e 175 da Constituição, ou seja, na terminologia adotada por Eros Roberto Grau em seu “A ordem econômica na Constituição de 1988”, as hipóteses de atuação do Estado no domínio econômico – a figura do Estado empresário, que não será versada nesta palestra -, a atuação do Estado sobre o domínio econômico, que se refere aos papeis ou funções a serem desempenhadas pelo Estado em relação à economia, e que será o objeto de nossas considerações, e a prestação de serviços públicos, terreno que, mesmo numa economia de mercado, é considerado próprio do Poder Público, e que também não será objeto de nossas considerações nesta palestra.
Quando se vai falar nas funções econômicas do Estado, uma Constituição que facilita deveras o trabalho do teórico é a brasileira de 1988, cujo artigo 174 se encarregou de realizar a respectiva tipificação.
Com efeito, os papeis que o Estado pode vir a desempenhar na conformação das relações econômicas são o de normatizador, fiscalizador, incentivador ou planejador, de acordo com o que se lê no aludido dispositivo.
Em alguns segmentos da Constituição, o exercício dessas funções se vê inclusive especificado (pense-se na disciplina da moeda, típica função de normatização, posta no inciso VI do artigo 22, na proteção ao consumidor, posta nos incisos XXXII do artigo 5º e V do artigo 170, típico exercício de fiscalização e tema em que a Professora Cláudia de Lima Marques pontifica, no apoio estatal ao desenvolvimento da ciência e tecnologia, no artigo 218, claro exemplo de fomento, em relação ao qual, três anos antes de entrar a Constituição atual em vigor, a Professora Ana Maria Ferraz Augusto defendeu sua tese de doutoramento na Universidade Federal de Minas Gerais, na organização do espaço urbano, posta no artigo 182, evidente manifestação do planejamento, tema em que se tem visto uma presença feminina bem significativa, cabendo registrar, aqui, dentre tantas, as Professoras Vanesca Prestes, Lucíola Cabral, Ana Maria Isar), mas a autorização, em termos gerais, para o respectivo exercício está posta no artigo 174.
Nenhuma das atuações materiais do Estado, como tive a oportunidade de ouvir, em 1986, em aula ministrada pela Professora (ainda me considero, mesmo com tantos anos de formado e atuando profissionalmente, seu aluno) Misabel de Abreu Machado Derzi, é gratuita, e desde que ele passou a concentrar o monopólio da coação – isto é, desde que se retirou do particular a possibilidade de fazer justiça com as próprias mãos -, para as realizar precisará de receita, seja de caráter – para utilizar a terminologia dos cultores do Direito Financeiro – “originário”, conceito que abarca aquelas modalidades de aporte de recursos que nascem de assunções voluntárias de obrigações em face do Poder Público, seja em caráter “derivado”, conceito que abarca aquelas modalidades de aporte de recursos que nascem de obrigações que emergem de um comando legal, independentemente de concordância do devedor.
É em torno de uma das manifestações da receita derivada, a tributação, que a nossa conversa vai gravitar, hoje. Claro que se trata de uma das manifestações mais antipáticas do Estado: por mais que haja expressões do tipo “eu me orgulharia de pagar impostos se fosse o dinheiro respectivo gasto com lisura” para justificar a resistência dos contribuintes, a realidade é que ninguém, absolutamente ninguém, gosta de se situar numa posição de devedor, e mesmo o contribuinte cheio de civismo que diz “orgulhar-se de pagar impostos” pode ser equiparado, no máximo, ao herói de guerra que se orgulha de suas cicatrizes, mas preferiria bem não ter recebido os ferimentos respectivos. Quem pensa que um Estado mínimo, que tivesse um número modesto de tarefas e confiasse a execução dos serviços públicos mais à iniciativa privada seria, sob o ponto de vista dos tributos, mais “barato”, esquece que os agentes privados a que se delegue a prestação desses serviços não irão atuar graciosamente, e que o dinheiro correspondente ao serviço da dívida pública também provém da massa de contribuintes.
De outra parte, apesar de a tributação continuar sendo a principal fonte de recursos financeiros, não é de hoje que ela se volta ao atendimento de funções que extrapolam esse aspecto estritamente “fiscal”. Um exemplo disto são os gravames aduaneiros, cujo objetivo é muito mais a proteção da produção nacional dos países que os empregam do que propriamente o aporte de recursos aos cofres públicos.
Claro que, atualmente, há questionamentos no âmbito doutrinário, caso do Professor Joaquim Freitas da Rocha, da Universidade do Minho, quanto à própria ideia de “extrafiscalidade”, já que, a despeito de o tratamento tributário diferenciado buscar, por vezes, a adoção de um comportamento que, sob o ponto de vista político, seja tido como relevante, pode ser ela empregada como uma forma de burlar os balizamentos dos tributos cujo escopo principal seja estritamente financeiro, isto é, simplesmente carrear recursos aos cofres públicos, em especial a capacidade contributiva. Com fundamentação bem desenvolvida, foi tal ideia apresentada na Universidade do Minho, no dia 27 de abril de 2023, em conferência a que compareceram, além dos Professores da Universidade anfitriã, expositores da Università degli Studi di Firenze, da Universidade Federal de Minas Gerais, da Universidade de São Paulo e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Seja como for, a tributação tem sido amplamente empregada para o desempenho das funções econômicas do Estado definidas no Texto da Constituição, isto é, tem sido amplamente empregada com este escopo que extrapolaria o simplesmente financeiro.
No final de dezembro de 2024, foi aprovada a Emenda Constitucional n. 132, que veiculou a reforma do sistema tributário da Constituição de 1988, dialogando, em especial, com os conflitos que nasciam a partir da gestão dos denominados “tributos indiretos”, conceito herdado da doutrina francesa, em especial de Louis Trotabas, contra o qual se insurgiu, fundamentadamente, Alfredo Augusto Becker em sua “Teoria geral do Direito Tributário”, e que, a despeito de tal insurgência, veio a lograr consagração no artigo 166 do Código Tributário Nacional e na Súmula 546 do Supremo Tribunal Federal.
Ao acrescer ao artigo 145 da Constituição um § 3º, determinando que o sistema tributário observe os princípios da simplicidade, da transparência, da justiça tributária, da cooperação e da defesa do meio ambiente, a Emenda Constitucional 132 põe um grande desafio à doutrina, no sentido de esclarecer o que significaria cada um deles, ante a polissemia de cada uma das palavras presentes no dispositivo, ressalvada, claro, a defesa do meio ambiente, nos tempos atuais, semanticamente compreendida, embora materialmente negligenciada.
Vamos exemplificar como repercute a Emenda em questão em relação às funções econômicas definidas no artigo 174 da Constituição. A função de “normatização” vem, desde já, em termos de indicar os efeitos da tributação sobre a “repartição”, isto é, sobre a participação de cada indivíduo no resultado das atividades econômicas, a partir de um título determinado – o salário, por decorrência do trabalho prestado, o lucro, por decorrência do risco na gestão de capital próprio, o juro, por decorrência do risco quanto à possibilidade de o devedor restituir o capital do credor, a renda, em função de outros títulos a que o ordenamento reconheça habilidade para a geração de frutos ou rendimentos -, buscando atenuar a regressividade da legislação tributária, como preconizado no § 4º que a Emenda em questão traz ao artigo 145. Também se apresenta como típico exercício da função de normatização da economia a redação ofertada à letra “d” do inciso III do artigo 146 da Constituição, referente ao tratamento diferenciado e favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte, com referência explícita ao ICMS, ao IBS, e às contribuições sociais. Normatização, no sentido do desestímulo, embora sem proibição das atividades, está no inciso VIII acrescido ao artigo 153, conferindo à União o imposto sobre a produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, traduzindo o que tanto Eros Roberto Grau como Luís Fernando Schoueri qualificariam como atuação do Estado sobre o domínio econômico por indução. O § 3º do artigo 155 da Constituição, que enumera taxativamente os impostos a incidirem sobre as operações de energia elétrica e telecomunicações, acresce a sujeição ao IBS, criado pelo artigo 156-A, e sujeita, também, somente aos anteriormente referidos e ao previsto no inciso VIII do artigo 153 as operações relativas a derivados de petróleo, combustíveis e minerais. Na disciplina do novo Imposto sobre Bens e Serviços – o IBS, que irá substituir, em grande parte, o IPI federal, o ICMS estadual e o ISSQN municipal -, o artigo 156-A não deixa de traduzir o exercício da função de normação, aqui, traduzida como o que Eros Roberto Grau denominou “atuação por direção”, quando, entre outras disposições, disciplina no inciso VIII do seu § 5º as hipóteses de devolução do imposto a pessoas físicas com o escopo de reduzir as desigualdades remuneratórias.
A relação entre a função econômica fiscalizatória e a tributação comparece na sujeição do Presidente do Comitê Gestor do IBS – ao qual iremos nos referir quando falarmos do planejamento – ao dever, sob pena de se configurar crime de responsabilidade, de prestar esclarecimentos quando convocado pela Câmara dos Deputados, pelo Senado Federal ou qualquer uma de suas comissões, posta na redação ofertada ao artigo 50 da Constituição, a constitucionalização do dever de informação, no documento fiscal, do montante a ser recolhido a título de IBS, no inciso XIII do § 1º do artigo 156-A, a determinação da anulação do crédito passível de ser apropriado pelo contribuinte desse imposto na hipótese de a operação anterior relativa à mesma mercadoria ou serviço tenha sido alvo de isenção ou fosse imune, no inciso II do § 7º do mesmo artigo 156-A, entre outros exemplos.
Quanto ao uso do tributo para fins de incentivo, ou fomento, a reforma, tomando em consideração a experiência do que ficou conhecido na doutrina como “guerra fiscal”, o leilão de benefícios realizado por Governos locais para atrair empresas, manifestou uma significativa preocupação, sobretudo porque, quando não há distorção de sua finalidade, os incentivos, como bem lembrado pela Professora Ana Maria Ferraz Augusto em verbete na “Enciclopédia Saraiva de Direito”, no qual realizou a tipificação minuciosa tanto dos financeiros como dos não financeiros, são um dos grandes instrumentos à disposição do Estado para o desenvolvimento equilibrado dos espaços em que exerce sua autoridade. Assim, exemplificando, temos o § 4º acrescido ao artigo 43, referente a observância de critérios de sustentabilidade para os incentivos regionais, a referência ao tratamento especial a ser ofertado às cooperativas pelas normas gerais de Direito Tributário na letra “c” do inciso III do artigo 146, a imunização ao ITCD para as transmissões e doações realizadas em prol de instituições sem fins lucrativos com finalidade de relevância pública e social no inciso VII do § 1º do artigo 155, a possibilidade de adoção, para o IPVA, de alíquotas diferenciadas em razão do tipo, valor, utilização e impacto ambiental, previsto no inciso II do § 6º do artigo 155, a interdição a que se utilize o novo Imposto sobre Bens e Serviços, de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios, para fins de benefícios ou incentivos, fora das hipóteses previstas na Constituição, por força do inciso X do 1º do artigo 156-A, o tratamento do regime fiscal favorecido para os biocombustíveis e hidrogênio de baixa emissão de carbono no inciso VIII do § 1º do artigo 225.
Mesmo o planejamento, embora desde o final da Ditadura Militar não venha sendo adotado entre nós, salvo no que se refere ao plano diretor municipal, não deixou de guardar relação com a reforma procedida pela Emenda Constitucional n. 132, de 2023, já que, além da consideração, no § 4º do artigo 43 da Constituição, dos incentivos como instrumentos de desenvolvimento regional, algo que, em países de Primeiro Mundo, costuma ser feito mediante um plano aprovado por lei e que seria, a rigor, o exigível, em face do § 1º do artigo 174, também da Constituição, temos a criação de um órgão colegiado para gerir o IBS, no artigo 156-B.
A simples enumeração desses exemplos, por si, mostra por que seria impossível tratar com a profundidade desejável, em uma conferência, ou mesmo em um artigo, a repercussão da reforma tributária em cada uma das funções econômicas do Estado. Basta, para hoje, indicar o dado que, mesmo no exercício da atividade forense, poderá justificar, ou não, o tratamento que se pode dar ao sujeito passivo da obrigação tributária, em termos de política econômica pública. E, desde já, vê-se que o alegado “princípio da simplicidade” será um norte de nada simples alcance. Muito obrigado.
Texto-base de pronunciamento do autor, a partir das pesquisas realizadas junto à Universidade do Minho sob a supervisão do Professor João Sergio Feio Antunes Ribeiro, no seminário “Direito Ambiental reflexões e perspectivas”, realizado na Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Pará, em 18 de março de 2024, ao lado dos Professores Sheila Pitombeira e Ibraim Rocha.
Ricardo Antonio Lucas Camargo - Professor nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professor Visitante da Università degli Studi di Firenze – Integrante do Centro de Pesquisa JusGov, junto à Faculdade de Direito da Universidade do Minho, Braga, Portugal – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP.
A complexidade da tributação no Estado Democrático de Direito está bem apresentada neste excelente artigo de Ricardo Camargo. A "simplicidade" tantas vezes arvorada como solução imediata contrasta com os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil prescritos no artigo 3° da Constituição Federal.