- Guilherme Purvin -
Derrotar o fanfarrão ultradireitista nas urnas, mesmo depois dos esforços da Polícia Rodoviária Federal para impedir que os eleitores de Lula não chegassem a tempo para votar, era mesmo motivo de muita festa. E o clímax foi Lula receber a faixa presidencial de cidadãos representando a diversidade do povo brasileiro: o cacique Raoni, o menino Francisco Carlos do Nascimento e Silva, o professor Murilo de Quadros Jesus, a cozinheira Jucimara Fausto dos Santos, o influenciador de inclusão Ivan Vitor Dantas Pereira, o metalúrgico Weslley Viesba Rodrigues Rocha e a catadora Aline Sousa. Não apenas de cidadãos. Também de uma cadela viralata chamada Resistência.
Na foto da subida da rampa, Resistência é presa por uma coleira e quem a conduz é o próprio Lula, segurando a corda com sua mão esquerda. A cadela não entende o que está acontecendo, embora esteja acostumada a conviver com multidões. Afinal, ela morava no acampamento formado pelos militantes durante todo o tempo em que Lula esteve preso na Polícia Federal, em Curitiba. Agora, porém, já não se tratava de uma simples cadelinha de rua: ela foi adotada por Janja. Como nos contos de fadas em que a menina que realizava a faxina na casa é a escolhida pelo príncipe, Resistência transformou-se na cadelinha de uma socióloga paranaense de 55 anos, formada pela UFPR e com MBA em Gestão Social e Sustentabilidade e casada desde maio de 2022 com o novo presidente da República.
Para um cão, porém, pouco importam os títulos acadêmicos, a carreira profissional ou o brilho intelectual de seu dono. Lembro-me de um catador que morava sob a marquise de um prédio na Rua Haddock Lobo, esquina com a Avenida Paulista. Sobre seu carrinho de papel, estava sempre a dormir confortavelmente um lindo golden retriever. Eu passava diante do cão e nem reparava que, mais abaixo, seu dono estava sentado no chão, vestindo trapos imundos e com a barba por fazer. Quando me afastava, ficava apenas matutando como é que um cão de raça, normalmente tão caro, havia ido parar nas mãos de um morador de rua. Ou seja, por onde andara aquele cão de pelos dourados e macios antes de ser acolhido por aquele homem? O contraste era surpreendente e a única lição que eu conseguia extrair era que os cães, tenham pedigree ou sejam vira-latas, apegam-se aos humanos, tenham diploma de curso superior ou sejam analfabetos. Às vezes, mesmo sem receberem comida em troca, como nos mostra a cadelinha Baleia, do romance de Graciliano Ramos.
Resistência vagava pela redondeza da Polícia Federal em Curitiba já antes do início do acampamento. Foi então acolhida por dois militantes. Devido ao frio, adoeceu. Foi então que Janja resolveu adotá-la. Divulgou esse gesto singelo nas redes sociais e, com isso, ganhou milhares de "likes".
Resistência, por sua vez, ganhou página na Wikipedia no mesmo dia em que subiu a rampa, em 1º de janeiro de 2023. Poucos cães têm esse privilêgio. Uma delas foi a Laika que, com três anos de idade, foi colocada num foguete para receber a duvidosa honraria de ser o primeiro animal terrestre a realizar uma viagem espacial. Duvidosa, sem dúvida, pois a cadelinha não voltou com vida para a Terra. Por muito tempo acreditou-se que ela teria morrido no sexto dia de sua missão, por falta de oxigênio. Em 2002, porém, foi autorizada a divulgação da verdadeira causa de sua morte: superaquecimento da cápsula poucas horas após o lançamento da nave. Melhor sorte teve o cão Rin Tin Tin, verdadeiro galã de cinema, que faleceu aos 14 anos de idade em Los Angeles no ano de 1932, nos braços de Jean Harlow. O animal foi enterrado no Cimitière des Chiens, nos subúrbios de Asnières-sur-Seine. Como o show deve continuar, os produtores do seriado facilmente encontraram um cão parecido para substituir o ator original e prosseguir com nova série, agora de TV.
A humanidade atribui aos animais as qualidades que bem entende, nas artes, na política, na psicologia. Antropomorfiza animais para os mais diversos fins e, nesse processo, antropomorfizações são quase sempre contraditórias.
Tomemos como exemplo as aves columbiformes. Seriam a pomba da paz no quadro de Picasso e a pomba abominada pela personagem Sandy Bates, no filme "Memórias", de Woody Allen, que não via mais do que "ratos com asas" exemplares da mesma espécie? Alguém diria que há que se distinguir entre (1) pombinhas brancas e (2) pombas urbanas. E aí então teríamos uma segunda divisão: (1) Pombinhas brancas: a) Representantes da paz universal; b) Personagens de canções infantis; c) Trabalhadoras de circo no interior do chapéu dos mágicos. E (2) Pombas de cores diversas: a) Urbanas, encontradas na Piazza di San Marco, em Veneza, ou no Viaduto Jacarehy, no centro de São Paulo. Podem dar origem a fobias como a do filme de Woody Allem ou a violências como a do personagem de certo conto de Rubem Fonseca cujo título não me recordo agora; b) Alvo para a prática de tiro; c) Pombos-correio, totalmente irrelevantes desde o advento da Internet.
Nessa classificação, as pombas urbanas ocupam posto equivalente ao dos cães viralatas. Provavelmente por esse motivo é que o ator e diretor de teatro Lino Rojas decidiu dar em 1989 o nome de Grupo Pombas Urbanas ao projeto desenvolvido com o apoio de Dom Paulo Evaristo Arns e Frei Leonardo Boff de dramaturgia com crianças em situação de rua. Seis anos mais tarde, Lino foi assassinado.
A cadelinha Resistência nunca saberá, mas tornou-se Embaixadora Canina de Adoção Animal, título recebido em 2022 durante o Dia Nacional dos Direitos Animais. Ela com certeza está mais preocupada em ter o que comer e onde dormir - no que não se diferencia de qualquer outro cachorro ou pomba.
Ou Milton Friedman, Murray Rothbard e Robert Lucas, os clones de Conan, ilustres mastins ingleses de Javier Milei. No caso de vitória do candidato da extrema-direita à presidência da Argentina, levaria ele algum deles a um cargo de embaixador? E por que não? Afinal, há 2 mil anos, Calígula colocou o nome de seu cavalo predileto, Incitatus, no rol de senadores de Roma, cogitando mesmo de transformá-lo em cônsul, segundo nos conta Suetônio. Nem por isso, Incitatus deveria ser tratado de forma menos respeitosa. Era um cavalo e, como tal, tinha dignidade animal. Se fosse Milei, e não Bolsonaro, o fascista que governou o Brasil por quatro anos, talvez as carpas japonesas do Palácio da Alvorada não tivessem sido abatidas nem as emas tão maltratadas. Não sei, porém, se Milei ama incondicionalmente todos os animais ou só os clones de Conan. Talvez tivesse oferecido os peixes e as aves de alimento aos mastins.
Aliás, é preciso lembrar que até Hitler amava os animais - particularmente sua cadela Blondi. De acordo com Letícia Albuquerque e Paula Galbiatti Silveira, "A primeira lei alemã especificamente sobre proteção animal foi desenvolvida na década de 1920 e promulgada em 1933 como “Reichstierschutzgesetz” ou Lei do Reich de Proteção Animal, durante o regime do nacional socialismo. Esta lei é considerada a primeira de proteção animal com base ética e não antropocêntrica, considerando os animais em si mesmos" (vide). Experiências científicas, no Nazismo, eram realizadas apenas em humanos - judeus, negros, ciganos, homossexuais. Para quem se interessa por Nazismo e Proteção aos Animais, recomendo o filme "Ele está de volta".
Já lá vão mais de dez meses desde a subida da viralata Resistência pela rampa. É rotineira a afirmação de que a beleza do espetáculo do dia 1º de janeiro de 2023 foi esfacelada quando do atentado ocorrido na semana seguinte. Não penso assim. Quem, de fato, colocou Lula de volta na presidência foram os seres humanos que o acompanharam: a maioria da população nordestina, povos originários, quilombolas, recicladores, trabalhadores na agricultura familiar. Mulheres como Ana Moser e Rita Serrano. Não homens como Cristiano Zanin, que acaba de ceder a jurisdição das varas cíveis de todo o país para as incorporadoras de imóveis desalojarem os moradores inadimplentes. Ou como Fufuca, que votou a favor do impeachment de Dilma Roussef e do marco temporal para a demarcação de terras indígenas.
Atribui-se a Bertold Brecht uma frase que ele jamais disse: "A cadela do fascismo está sempre no cio". Na verdade, trata-se de uma condensação da última fala na peça A Resistível Ascensão de Arturo Ui. No atual contexto da política brasileira, a citação correta é muito mais esclarecedora:
“Se pudéssemos aprender a olhar em vez de ficar boquiabertos, veríamos o horror no coração da farsa. Se ao menos pudéssemos agir em vez de falar, nem sempre acabaríamos no chão. Isso foi o que quase nos dominou; não se alegrem ainda com a derrota dele, homens! Embora o mundo tenha se levantado e parado o bastardo, a cadela que o deu à luz está no cio novamente".
Essa cadela, forjada pela vigorosa palavra de Bertold Brecht, expõe impudicamente o seu cio quando derruba uma segunda mulher do alto escalão do Governo Federal e, no mesmo ato, cancela a exposição de Arte denominada "O Grito!", que incluía uma obra representando Paulo Guedes, Arthur Lira (PP-AL) e Damares (Republicanos-DF) dentro de uma lixeira com as cores da bandeira nacional. Um cão viralatas não teria sequer fuçado o que haveria dentro dessa lixeira: ali, tudo era muito indigesto. Na verdade, se alguém se desse ao trabalho de ver a obra em sua integralidade, constataria que Marília Scarabello, longe de ser uma radical anti-bolsonarista, retratava em sua obra inúmeras manifestações populares ocorridas ao longo dos últimos anos, todas envolvendo o uso da bandeira nacional. O que incluía também imagens laudatórias de Bolsonaro!
Extremamente triste saber que Lula não tem poder sequer para impedir a censura a uma exposição de arte. E, nesse sentido, cabe perguntar qual teria sido mais grave, a censura à exposição "Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira" por um banco privado (Santander) em 2017 ou a atual, que resultou até na demissão da presidenta da Caixa Econômica Federal?
Na verdade, Lula nunca gostou de viralatas. Sempre disse que "o brasileiro precisa perder esse complexo de viralata", ao referir-se ao fenômeno do colonialismo cultural e psicológico. Palavras, em especial atos falhos, merecem toda atenção do mundo. Hoje, a simbologia do recebimento da faixa presidencial mereceria uma outra leitura: viralatas sobem a rampa, mas sobem de coleira, conduzidos a rédea curta pelo presidente eleito. Para além da imagem da cadelinha Resistência, há o nivelamento: em seu governo, os demais representantes do povo brasileiro ali presentes terão o mesmo tratamento dispensado ao cãozinho. O que se exige é fidelidade. E quando o cão rosnar para Artur Lira, caberá ao dono dar-lhe um tabefe e ensinar:
"Quieto! É amigo!"
Guilherme Purvin é escritor e co-editor da Revista PUB-Diálogos Interdisciplinares. Ex-Presidente do IBAP e da APRODAB. Autor dos livros de ficção "Laboratório de Manipulação" (Letras do Pensamento, 2017), "Sambas & Polonaises" (Tribo da Ilha, 2019), "Virando o Ipiranga" (Terra Redonda, 2021) e "Paredes Descascadas" (Terra Redonda, 2023).
Guilherme, encontrei teu texto ao acaso hoje e gostei muito. Obrigada pela lucidez e por buscar pelos fatos. Forte abraço.
Grande texto! ácida crítica! Parabéns!
Texto poderoso e esclarecedor. Precisamos encarar a realidade por trás dos simbolismos, muitas vezes esvaziados em ações contraditórias. Parabéns, Guilherme!