- Carlos Marés -
Quem inadvertidamente chegasse lá, caminhante perdido, explorador de novos caminhos ou simplesmente curioso, não seria um passante, por que lá era o fim da linha, a pequena e tortuosa estradinha não seguia adiante, a partir dali já o caminhante teria que se tornar navegante, mas, enfim, quem chegasse lá e perguntasse quanto tempo aquela gente estava ali, dificilmente receberia uma resposta precisa. Desde que nasci, se a referência fosse pessoal, desde de sempre, se a resposta fosse mais coletiva. O fato é que estavam lá, viviam lá e o lugar era de uma beleza tão deslumbrante que talvez nem fosse notada pelos moradores.
O mar que se estendia adiante era a baia de Antonina com suas águas calmas e onduladas pela brisa, mas se podia ver, sem reconhecer exatamente o limite, a baia de Paranaguá, emoldurando as duas baías a Serra do Mar com seus domínios aflorando aqui e ali em ilhas, istmos e promontórios. Olhando com mais acuidade se nota o mangue que é onde a Serra do Mar de confunde com as águas, querendo ser água e as águas insistindo ser terra. Se a vegetação parece estar em dúvida sobre sua natureza aquática ou terrestre, os animais não, sabem exatamente os seus lugares. O guará voa, o caranguejo se entoca e os peixes nadam, acima das águas, se agarrando em ramos retorcidos e enfeitando a paisagem, as muitas cores de bromélias .
A beleza deslumbrante e a facilidade de se esticar um asfalto, ou anti pó que seja, com dinheiro público, é claro, despertou a cobiça de sérios e honrados empreendedores. Quem terá vivido na região antes dos pescadores que dizem que sempre viveram ali? Há rastro humano, há sambaquis, enormes, cobertos de relva fina, visíveis e enigmáticos, empilhados conha a concha e que escondem mil mistérios em suas entranhas. Não precisa nem cavoucar para saber que estão ali, basta afastar a relva e se revelam amalgamados pelo tempo. Os sambaquis cercam o mangue e uma boa estrada que seja mais do que um caminho de pedestres precisa derrubá-los, cortá-los, mutilá-los, removê-los. Como dificuldades podem se tornar oportunidade, diz o empreendedor arguto, não se deve chamar os sambaquis por esse nome, deve ser tratado como um monte perdido e inútil de conchas velhas empilhados ao serviço do progresso e que, devidamente espalhados, servirá de base sólida para a estrada, como são centenas de quilômetros do litoral sul do Brasil, ganhando uma utilidade moderna e esquecendo para sempre seu passado e seus mistérios.
A comunidade de pescadores nunca se preocupou com o precário caminho, nem com os sambaquis. Afinal, é tão fácil levar os peixes, caranguejos, ostras, camarões, mandioca e uma e outra fruta, banana quem sabe, ao cais de Antonina, ao Mercado, juntar uns trocados e comprar sal, açúcar, um pedaço de pano e uma panela de ferro, porque as de barro podem fazer, e, então, trazer de volta no mesmo barco. Porque então pensar em estradas para carro ou caminhão, se uma canoa ou uma bicicleta os pode levar e trazer até Antonina? Mas que não pensem que a dura vida da comunidade era triste nesse lugar encantado. Quem pode fazer canoa, com muito mais precisão e menos esforço fará uma rabeca. Tocá-la já é outra coisa, precisa de talento que nem sempre o esforço garante, mas que por certo o fandango desperta e anima. O talento sempre aparece nessas belas terras onde se avista águas serenas e a imensidão das Serras. O talento é primo do encanto e o que não falta nessa terra é o encanto de toda lua cheia. E se precisar demais incentivo, a cataia o dará, misturada ao aguardante puro destilado ali mesmo.
Longe, muito longe e num tempo já perdido, homens de fala rebuscado entenderam que aquelas terras e mangues onde a vida pulsa para gentes plantas e bichos tem que ter nome na lei, formas e processos para serem usadas por gente. Aquelas terras eram e continuam sendo chamados de Terrenos de Marinha, propriedade da União Federal e passíveis de concessão a quem delas quiser tirar proveito econômico. Se peguntados, os pescadores não querem tirar proveito econômico daquela terra, no máximo uma mandioca, araçá e limão rosa, e a caxeta, é claro, porque o fandango tem que continuar. É claro que vão tirar proveito do guapuruvu imponente para fazer a próxima canoa, mas não entendem que seja um proveito econômico, pedem permissão ao guapuruvu e sabem que outros já estão crescidos e a caminho. Mas os senhores empreendedores tem outras ideias, além da estrada pública que já fornecerá boas razões e proveito econômicos, quanto valerá um lote no paraíso?
Como o cinismo não tem limite, dirão que vão proteger o meio ambiente, será proibido cortar a caxeta e guapuruvu. Onde já se viu usar madeira para fazer rabeca e canoa, duas inutilidades para o mundo moderno? A tática é simples. Basta a Secretaria do Patrimônio da União conceder o domínio útil dessas terras para a realização de um grande empreendimento econômico que pode virar loteamento de luxo, resort ou até mesmo uma asseada marina aterrando o mangue sujo e de desagradável odor. As pessoas que porventura estiverem por lá, invasores de terra pública, encontrarão trabalho na cidade. Afinal, o nome disso é progresso, desenvolvimento, coisa que os mais antigos chamavam de melhoramento. Depois, verão como o mangue se torna um jardim de belas, coloridas e ordenadas flores, que nem precisam vir de longe, são dali mesmo, a começar pela estranha e cativante begônia maculata e as mais de mil espécies de orquídeas.
Obtida a concessão, a parte mais fácil será tirar os invasores. Obtida a liminar na ação possessória bastaria ir até o local com o papel na mão e oferecer acordo, tudo se faria com gestos civilizados, isto é, pagando um valor para demover resistências, sem as melhorias da estrada cada lote nada vale. Alguns adestrados para serem gentis vão até a comunidade para fazer a oferta. Primeiro se escandalizaram com o número de famílias, eram mais de cem, segundo, com a negativa geral do acordo, não há lotes, dizem. Não era para ter tanta gente, desde o trapiche de Antonina se adivinhava umas dez famílias e pela humildade do trato não poderia haver dúvida na rendição, ledo engano, foi fácil resistir à compra, nenhuma das coisa solicitadas era mercadoria, nem gentes, nem terras, nem mangues. Os gentis sucumbiram, só restava a força bruta. Afinal para que serve a polícia e a decisão judicial?
O cumprimento da decisão de despejo não era fácil, a Polícia tinha dificuldade de chegar e mais ainda de tirar as cem famílias. Nesse meio tempo as lideranças locais conversaram com sindicalistas e outras gentes da região que lhes indicaram um advogado popular para a defesa de direitos. Uma operação de guerra foi montada com máquinas de escrever, defesa copiada em mimeógrafo a tinta, com espaços para serem preenchidos à máquina, com cópia em papel carbono. Uma casa de amigo na Ponta da Pita foi usada como quartel general. Um fim de semana inteiro, uma longa, desorganizada mas obediente fila de pescadores e suas mulheres, com documentos na mão e muita conversa, se apinhava na casa simples que oferecia suco de frutas locais, limonada e água à vontade. Café só para os dois advogados e a advogada que trabalhavam incessantemente, os pescadores e as famílias tinham trazido lanche e, as vezes, algum pegava o barco e ia buscar mais comida para a fila. Ninguém arredou o pé até a última petição e as procurações terem sido assinadas, ordenadas, conferidas e grampeadas.
Na segunda feira de manhã, quando foram apresentadas as mais de 120 contestações à ação de despejo o cartorário arregalou muito os olhos, ficou mais branco do que era usualmente e disse de uma forma atabalhoada e insegura: “Tenho que falar com o doutor juiz” e saiu tropeçando na mesa que sempre estivera ali. Demorou longos minutos e voltou com o carimbo na mão para receber os documentos. O promotor da comarca foi visto sorrateiramente num vão de porta, não queria deixar de ver a trinca de advogados. Ninguém poderia esperar que os pescadores contestassem a ação no último dia do prazo. O despacho do juiz declarando a revelia e retomada imediata da área por quem nunca tinha tido posse já estava pronto, com autorização para o uso de força policial, assinado e datado para o dia seguinte. O juiz não estava lá na segunda feira, nem estaria na terça, o cartorário tinha falado por telefone. A conversa entre o juiz, o cartorário e o empreendedores nunca se soube.
Sem outra alternativa, o juiz marcou uma audiência para dali um mês. O Fórum de Antonina era muito pequeno para receber mais de duzentas pessoas interessadas em acompanhar a audiência pública. Na sala, a advogada e os dois advogados populares estavam sentados a um lado, cada um representando um terço dos contestantes em distribuição organizada. Do outro lada da mesa um jovem e inexperiente integrante de um dos maiores escritórios de advocacia de Curitiba, talvez estagiário, e seu representado, um senhor maduro, assustado com a quantidade de gente e que insistia diretamente com o juiz para chamar mais segurança. O juiz, visivelmente inquieto e contrariado, resolveu abrir a sessão, mas antes disse que não era possível fazer audiência com tanta gente, que era muito trabalho, e olhando diretamente ao jovem inexperiente advogado rico, disse que estava cansado e reclamou do salário, afirmando que até o consórcio do carro estava atrasado, e mostrou o carnê sem pudor. O jovem advogado ensaiou um gesto para receber o carnê, mas recolheu a mão, indeciso.
Quando a audiência finalmente foi aberta, a advogada popular pediu a palavra para dizer que o juiz não havia se manifestado sobre a petição de mais de 120 partes para que fosse chamada a Secretaria do Patrimônio da União, proprietária da terra, e que, portanto, a audiência não poderia ser realizada. O juiz olhou com ódio primeiro para a advogada, depois para o jovem rico dizendo: “Você vê? Vamos ter que deslocar a competência para a Justiça Federal!” O jovem e inexperiente advocado não se moveu, sequer olhou para o juiz, já sabia da decisão. O juiz, sem se conter, bateu na mesa e disse: “Defiro! Está encerrada a audiência” e desapareceu por uma porta atrás de sua cadeira. Demorou alguns segundos para o lotado Fórum entender que a primeira batalha havia sido ganha. Urras, conversas altas, gritos, chapéus voando e outras travessuras apagavam os gritos do cartorário que dizia: “Senhores, este é um lugar sagrado, por favor!”
Quando todos, alegres mas menos excitados iam saindo do Fórum ainda viram o luxuoso carro do jovem advogado virar a esquina. A pequena multidão foi direto para o trapiche pegar suas canoas, naquela noite haveria fandango, mesmo sendo terça feira. O trio de advogados populares sentou-se num bar do Mercado e pediu café com pastel, sabiam que luta ainda seria intensa.
Carlos Frederico Marés de Souza Filho, professor de Direito Socioambiental da PUC-PR, é Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública - IBAP.
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