- Sandra Cureau -
Em 1964, coincidentemente o ano do golpe militar que vitimou o Brasil, o cantor Roberto Carlos lançou um dos seus sucessos da fase ‘ié-ié-ié’: ‘Um leão está solto nas ruas’.
Lembrei-me do fato quando li que o Ministro da Cidadania, Onix Lorenzoni, certamente sem nada melhor para fazer, resolveu editar a Portaria nº 351, de 7 de abril de 2020, regulamentando os procedimentos para concessão do auxílio emergencial de que trata a Lei nº 13.982, de 2 de abril de 2020, já regulamentada pelo Decreto nº 10.316/2020, do mesmo dia 7 de abril deste ano.
O Decreto em questão contém algumas preciosidades, como o § 6º do seu artigo 7º, que dispõe textualmente: “§ 6º Serão considerados inelegíveis [para o recebimento do auxílio emergencial] os trabalhadores com indicativo de óbito no Sistema de Controle de Óbitos e no Sistema Nacional de Informações de Registro Civil.”
Trocando em miúdos, se você já morreu e ainda não aprendeu a ressuscitar, não adianta tentar receber o auxílio emergencial porque não vai rolar.
Alguns leitores, certamente, poderão argumentar que inexiste trabalhador morto. Se alguém trabalha é porque está vivo. Mas vá lá que apareça algum; é bom deixar as coisas bem esclarecidas.
Outros irão ponderar que, se a lei já foi regulamentada via Decreto, não há necessidade de mais uma regulamentação, mormente quando o país está às voltas com ‘uma emergência de saúde pública de importância internacional’ e em busca de socorro para as pessoas em situação de vulnerabilidade econômica.
Na parte que nos interessa, a Lei que instituiu o auxílio emergencial exigiu, apenas, que o trabalhador estivesse inscrito no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico) até 20 de março de 2020, ou que, nos termos de autodeclaração, recebesse até ½ salário mínimo mensal.
Por sua vez, o Decreto que a regulamentou criou condições de elegibilidade para o recebimento do benefício em questão, entre as quais, a inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas e a regularidade da situação do CPF do trabalhador. A Portaria que regulamentou o regulamento manteve, expressamente, essas exigências e, em caso de famílias monoparentais, determinou que os filhos das trabalhadoras também estivessem inscritos junto à Receita Federal.
Imagem: Portal dos Animais.
A imprensa alertou, na ocasião, para os problemas que isso causaria. Para inscrição no CPF, menores de idade sem título de eleitor necessitariam comparecer a uma agência dos Correios, da Caixa Econômica ou do Banco do Brasil; milhares de pessoas procurariam as agências da Receita Federal, para tentar regularizar sua documentação; outros milhares tentariam fazer uso do aplicativo ‘Caixa - Auxílio Emergencial’ ou do site da CEF. Haveria filas imensas e falhas na conexão, o que efetivamente ocorreu.
A Receita Federal divulgou nota, justificando seus problemas pelo volume excessivo de acessos e aconselhando que os usuários tentassem se cadastrar em diferentes períodos do dia, pois a habilitação poderia não ser possível na primeira tentativa. Certo, pessoas que não têm emprego podem passar o dia diante de um computador, tentando acessar o site da Receita, mesmo que, para tanto, tenham que se valer de lan houses ou cyber points, que, evidentemente, não são gratuitos.
Nesse ínterim, o Estado do Pará ajuizou ação cautelar antecedente contra a União para que fosse determinada a suspensão da exigibilidade da regularização do CPF como condição para o recebimento do auxílio emergencial.
O Juiz Federal Ilan Presser, do TRF/1, ao apreciar o pedido de tutela de urgência recursal, ordenou “a suspensão imediata, em todo o território nacional, da exigência da regularização de CPF junto à Receita Federal, para fins de recebimento do auxílio emergencial, contida no art. 7º, § 4° do Decreto n° 10.316/2020, até o pronunciamento judicial definitivo da Turma julgadora”.
No entanto, a União ingressou com pedido de suspensão de liminar junto ao Superior Tribunal de Justiça, sustentando que “o cumprimento da decisão geraria grave lesão à ordem e à economia públicas”, pois demandaria remodelação da plataforma da Dataprev e que a regularização de dados do CPF poderia ser realizada de forma on line e gratuita pelo site da Receita Federal.
É certo que as instituições não se conversam, mas soa risível que, enquanto a Receita reconhece que ninguém consegue acessar seu site, a AGU o indique como a solução de todos os problemas.
Ainda assim, o Presidente do STJ, João Otávio de Noronha, concedeu a suspensão pleiteada pela União, destacando o prejuízo que atingiria a Dataprev (“severa lesão à ordem e à economia públicas”), que teria que readequar seu sistema de gerenciamento cadastral.
Ora, mesmo que se reconheça que a regularização do CPF importa na coibição de fraudes no recebimento do benefício emergencial, não se mostra razoável exigir que pessoas idosas, carentes, ou até mesmo contaminadas pelo Covid-19, tenham que se aglomerar em filas, com o intuito de cumprir tal requisito, para garantir, ao menos, o direito à alimentação. Ademais, muitas das pessoas que carecem do auxílio não têm acesso à internet ou, quando têm, não sabem utilizar os canais digitais.
Grande parte dos possíveis beneficiários, especialmente da Região Norte, vive em locais de difícil acesso, distantes das localidades que dispõem dos serviços necessários à regularização do cadastro, sendo, muitas vezes, forçoso fazer uso de embarcações para chegar-se a uma cidade.
Barco usado por moradores para se locomover em Rio Branco (AC). Imagem: Divulgação/Prefeitura de Rio Branco.
O benefício emergencial, instituído justamente com o escopo de assegurar a permanência das pessoas em casa, se mantida a suspensão, ensejará o oposto, contrariando, assim, as recomendações das autoridades sanitárias nacionais e internacionais, como o Ministério da Saúde e a Organização Mundial da Saúde – OMS.
Parece oportuno questionar o que mais importa no momento: o direito à vida e à saúde, através da garantia do mínimo existencial aos necessitados - evitando-se, ainda, a contaminação de outras pessoas -, ou a regularização dos cadastros junto à Receita Federal, a fim de se evitar fraudes no recebimento do auxílio?
Entre os direitos básicos e inderrogáveis, irrompe, inquestionavelmente, em primeiro lugar, o direito à vida e à saúde, mormente em situação de pandemia, com vírus altamente contagioso e que tem causado milhares de mortes pelo mundo.
É, pois, o caso de manter-se o Leão preso até que o surto da pandemia do Covid-19 seja superado, sem prejuízo de soltá-lo, para que corra atrás de desempregados e pessoas de baixa renda, tão logo cesse o perigo atual.
Sandra Cureau é Subprocuradora-Geral da República, faz parte da diretoria da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil – APRODAB, fez mestrado na UERJ e foi Vice-Procuradora-Geral Eleitoral (2009/2013)
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