-Fernando de Azevedo Alves Brito-
Em abril de 2006, Dalai Lama realizava a sua terceira visita ao Brasil, tendo em sua agenda, entre outras atividades, a participação em seminários. Em um deles, intitulado “Natureza e Treinamento da Mente no Budismo Tibetano”, após a sua fala — como é tradicional em eventos budistas —, passou a responder às perguntas dos presentes e a tecer considerações acerca de suas colocações.
Uma das provocações deu-se por meio do seguinte comentário: "Eu percebo que quando começo a atravessar a ilusão e enxergar a realidade sou vista como estranha ou um pouco louca pelos outros...". Ao ser informado, ao pé do ouvido, sobre o teor da referida provocação, Dalai Lama não segurou a gargalhada, para, em seguida, em tom mais sério e centrado, indagar: “Quem sabe o que é realidade? Sempre é preciso uma verificação. Você pode acreditar que isso ou aquilo seja realidade, mas há certeza disso? Então, você mesma deve fazer uma verificação, por meio de questionamentos individuais e valendo-se de outras pessoas. Se a sua visão da realidade não corresponder à realidade, os outros irão te ver como louca”. Após proferir uma nova gargalhada, Dalai Lama prosseguiu, com humor, a sua fala: “É possível que você esteja me vendo como louco, mas isso não tem importância” [1].
Sem querer, aqui, tecer elucubrações acerca da percepção do real, não se pode negar a coerência dos ensinamentos de Dalai Lama: a apreensão da realidade não é tarefa destinada exclusivamente à individualidade ou missão possível no isolamento; requer, intrinsecamente, os outros como referencial, como parâmetro essencial para a sua viabilidade.
Transportada ao Brasil contemporâneo, tal reflexão enverga mais sentido. Iniciativas adotadas pelo Ministério do Meio Ambiente, sob o leme de Ricardo Salles, apontam para uma direção oposta a tudo aquilo que já foi realizado, no campo jusambientalista, pelos sucessivos governos brasileiros, desde a consolidação do processo de redemocratização e a promulgação da Constituição Federal de 1988.
Não foi por outro motivo que todos os ex-ministros do meio ambiente (ainda vivos) assinaram, em 8 de maio de 2019, um comunicado, por meio do qual se posicionaram contra o desmonte socioambiental no Brasil. Rubens Ricupero, Gustavo Krause, José Sarney Filho, José Carlos Carvalho, Marina Silva, Carlos Minc, Izabella Teixeira e Edson Duarte, em uma “frente” inédita — como classificou o El País [2] —, questionaram o esvaziamento da capacidade de formulação e de implementação das políticas públicas do Ministério do Meio Ambiente. A perda da Agência Nacional de Águas (ANA), a transferência do Serviço Florestal Brasileiro para o Ministério da Agricultura, a extinção da secretaria de mudanças climáticas, a ameaça de “descriação” de áreas protegidas, de “apequenamento” do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) e de extinção do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) foram apontadas, pelos ex-ministros, como exemplos desse cenário [3].
O alerta conjunto dos antecessores de Ricardo Salles deu-se como um canal político (suprapartidário) para, em suas próprias palavras, salvaguardar o “conjunto de leis e instituições aptas a enfrentar os desafios da agenda ambiental brasileira nos vários níveis da Federação”, um patrimônio construído pela sociedade brasileira nas últimas décadas, ainda que após sucessivos governos. Esse canal, ademais, abarcou, nas suas entrelinhas, a mensagem de que a política ambiental brasileira (seu arcabouço normativo, seus institutos e suas instituições) é uma política de Estado e não de governo; não se submete, desta feita, a nada além da ordem constitucional; não se subjuga a partidos e a ideologias.
O documento conclamou o atual governo brasileiro ao diálogo permanente e construtivo na seara ambiental. E se o diálogo possibilita a dialética, requer, por outro lado, saber “falar” e, principalmente, saber “ouvir”; considerar, para além de si, a existência do “outro” e, para isso, reconhecer o seu coprotagonismo. A realidade não se faz um construto unilateral nem pode ser imposta ou decretada.
A inteligência do art. 225, caput, da Constituição Federal de 1988 reconheceu que a garantia do meio ambiente ecologicamente equilibrado repousa no berço do diálogo, ao consagrar a necessidade de cooperação entre o Poder Público e a coletividade. Essa diretriz é um óbice a políticas ambientais recriadas à revelia da sociedade civil e, por vezes, do parlamento.
O comportamento governamental, no entanto, destoa desse contexto, por ignorar o valor do diálogo, suprimir o exercício da cidadania e “fechar os ouvidos”, inclusive, aos especialistas e à comunidade internacional. O teor da resposta do Ministro Ricardo Salles aos seus antecessores, galgada em argumentos vazios, desprovidos de cientificidade e de autocrítica, reforça essa perspectiva [4].
A instrumentalização desse cenário argumentativo fomenta, em desrespeito à Constituição Federal, o ímpeto de relativização e de flexibilização das normas jurídicas ambientais e, na sua esteira, o surgimento de propostas ainda mais maliciosas e prejudiciais. A proposta de redução da representatividade da sociedade civil no CONAMA a um patamar meramente simbólico é um exemplo disso, assim como aquela que pretende suprimir o tópico referente às reservas legais do novo Código Florestal.
A lição de Dalai Lama prega a necessidade de ter-se o “outro” como parâmetro para se apreender a realidade. Essa deveria ser uma baliza para todo e qualquer administrador público, em especial para um Ministro do Meio Ambiente. Para além disso, um Ministro do Meio Ambiente deveria ser capaz de escutar o vento, para melhor direcionar as suas ações.
Bob Dylan, em sua canção “Blowin' In The Wind”, revela que o vento sopra respostas para questões transcendentais e existenciais humanas. Nas palavras do compositor, em tradução livre: “Quantas vezes um homem deve olhar para cima até que possa ver o céu? [...] Sim, e quantas orelhas um homem deve ter até que possa ouvir as pessoas chorarem? Sim, e quantas mortes serão necessárias até ele saber que muitas pessoas morreram? A resposta, meu amigo, está soprando no vento. A resposta está soprando no vento.”.
O vento, por certo, é guardião de bons conselhos sobre as questões ambientais, sobre a ameaça que nos representa ignorá-las. Por isso, um bom Ministro do Meio Ambiente deveria ser capaz de escutá-lo, de compreendê-lo. Mas como se esperar que pessoas públicas que não ouvem os outros sejam capazes de escutar o vento? Talvez essa seja uma questão cuja resposta nem mesmo o vento possa soprar.
Referências
(1) Vide, entre 1:59:14 a 2:00:36, o vídeo contido no seguinte endereço: https://www.youtube.com/watch?v=jTrLwI6lcoA&t=7151s.
(2) GORTÁZAR, Naiara G.; BETIM, Felipe. Uma inédita frente de ex-ministros do Meio Ambiente contra o desmonte de Bolsonaro. El País, São Paulo, 09 de maio de 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/08/politica/1557338026_221578 .html. Acesso em: 11 jun. 2019.
(3) RIBEIRO, Bruno. Ex-ministros do Meio Ambiente divulgam manifesto com críticas ao governo Bolsonaro. Estadão, Sustentabilidade, São Paulo, 08 de maio de 2019. Disponível em: https://sustentabilidade.estadao.com.br/noticias/geral,ex-ministros-do-meio-ambiente-divulgam-manifesto-com-criticas-ao-governo-bolsonaro,70002820780.Acesso em: 11 jun. 2019.
(4) SALLES, Ricardo. MMA responde a carta de ex-ministros. Ministério do Meio Ambiente, Nota Ministério do Meio Ambiente, quarta-feira, 08 de maio de 2019. Disponível em: www.mma.gov.br/component/k2/item/15484-mma-responde-a-carta-de-ex-ministros.html. Acesso em: 11 jun. 2019.
Fernando de Azevedo Alves Brito-Doutorando em Direito (UFBA) Professor do IFBA, Campus Vitória da Conquista
Comentários