- Guilherme Purvin -
Era a primeira vez que o Brasil tinha a possibilidade de ver um debate entre Lula e Bolsonaro, já que há quatro anos precisaram prender o ex-presidente e o fanfarrão ultradireitista, mesmo assim, fugiu ao debate com Fernando Haddad, primeiro suplente da coligação PT/PC do B. Na ocasião, o comentário geral era de que o fã de torturadores de mulheres temia tomar uma tremenda lavada do ex-prefeito de São Paulo.
Natural, assim, que tantas pessoas se dispusessem a sacrificar a noite deste domingo, ligando a TV (lembram-se desse meio de comunicação?) e sintonizando na Cultura ou na Bandeirantes, quando podiam estar ocupando seu tempo com coisas muito mais agradáveis, como a leitura do romance Niétotchka Niezvânova, de Fiodor Dostoievski ou a audição do novo lançamento da cantora de jazz e blues Samara Joy.
O que vimos, ao longo do interminável debate foi algo profundamente triste. De um lado, o tosco Bolsonaro fazendo o que sempre soube fazer, isto é, expor o seu profundo desequilíbrio mental, vociferando contra o fantasma do comunismo e as mulheres em geral e negando suas próprias declarações. De outro, um Lula exausto e sem energia, totalmente na defesa, repetindo ad nauseam tudo o que fez ao longo de seus dois mandatos presidenciais (que foram transformados em três e meio pelos seus oponentes).
Ingenuamente, Lula achava que encontraria em Ciro Gomes e Simone Tebet dois aliados na luta contra o mal maior, que vem a ser a ultradireita miliciana. Diferentemente do candidato Felipe d'Avila, do NOVO, que ostensivamente poupava Jair Bolsonaro e atacava Lula, Ciro e Simone não se fizeram de rogados. Sem poupar o atual presidente, deitaram e rolaram em cima da herança histórica deixada pelo PT: mensalão, petrolão etc.
Era previsível que, estando em primeiro lugar nas pesquisas eleitorais, Lula seria o alvo principal de seus adversários. Mas nem sempre acreditamos em previsões. O PT conseguiu formar uma aliança muito ampla, trazendo Geraldo Alckmin para ser seu vice-presidente. Não atinou que todos os que estavam lá na Bandeirantes ontem, queriam se tornar a tal terceira via e, portanto, a última coisa que iriam fazer seria facilitar a vida de Lula para que este vença no primeiro turno.
Na ausência de candidatos de esquerda nesse debate, quem se saiu melhor foi Ciro Gomes (PDT). Colocou o dedo na verdadeira ferida dos governos Lula: foi ele o presidente que mais deu lucro aos banqueiros. Afirmou que, em termos práticos, de política econômica, não havia diferença alguma entre as propostas de Lula e Bolsonaro. Ambos são nomes palatáveis ao mercado, representantes do neoliberalismo. Lembrou que, ao contrário do que Lula tentava passar, o fato de ter levado muitos jovens das classes D e E para as faculdades só contribuiu para a proliferação de universades caça-níquel da mais baixa qualidade. A performance do político de Sobral foi das melhores, especialmente diante da mediocridade dos dois primeiros colocados.
A grande atração, porém, foi a 4ª via. Simone Tebet (MDB), até então uma candidata um tanto desconhecida, alcançou plenamente seu objetivo: tornou-se subitamente uma grande líder feminista. Dialogou com brandura com a candidata Soraya Thronicke (União Brasil), a quem chamou de sua "brilhante ex-aluna" de Direito - colocando-se, assim, num patamar superior. Soraya parece não ter notado a elegante rasteira e explicou que poucos sabiam, mas também havia sido professora. De Inglês. Só que Simone não era uma aluna sua. Simone trabalhou com duas vertentes principais: feminismo e COVID-19. Comportou-se com fimeza, não enveredando em temas que não dominava. Soraya, por sua vez, depois de prometer que faria revelações bombásticas e pedir reforço policial para sua proteção, limitou-se a reproduzir o trintenário bordão de Marcos Cintra sobre o "imposto único". É bem verdade que Soraya tentou disputar com sua professora de graduação a imagem de líder feminista, mas não teve o mesmo talento que a mestra.
A questão ambiental não foi tratada com a profundidade que merecia. É bem verdade que Lula a trouxe à tona mais de uma vez, realçando algumas conquistas de seu governo no campo do Direito Internacional do Meio Ambiente (Copenhague, Paris) e dentro de casa (redução dos desmatamentos na Amazônia). Nenhum dos demais candidatos, contudo, parecia interessado nesse assunto. Aliás, Simone e Soraya, assim como o caricato avatar de Amoedo, são ferrenhos defensores do agronegócio e, como tais, estão pouco se importando com o futuro do Planeta Terra. E, assim, o que Lula acreditava ser um possível trunfo no debate, não provocou sequer marolinha. Isto, sem dúvida, é algo de profunda gravidade, em tempos de emergência climática.
Tivesse eu 20 anos de idade hoje, provavelmente teria me impressionado com o socialismo de Ciro Gomes que, numa sacada genial, lembrou do nome do ex-Senador Eduardo Suplicy, que vem sendo há muito tempo tratado pelo PT como um inimputável (Lula chegou a dizer que Suplicy deveria receber o Prêmio Nobel da Paz, mas não explicou por que seu velho companheiro de luta pela redemocratização não é mais convidado para festas e encontros petistas).
Não estivesse eu rodeado de amigas que realmente lutam pelos direitos da mulher, acreditaria no feminismo de Simone Tebet, sem ficar sabendo que ela, por exemplo, votou no Senado a favor de reforma que permite mulheres grávidas trabalharem em lugares com radiação, frio e ruído. A senadora do Mato Grosso do Sul, autora de projeto que pede a suspensão das demarcações de terras indígenas e o pagamento de indenizações para fazendeiros invasores, integrou a trupe que ajudou a eleger Bolsonaro. Também não teria me lembrado que ela votou contra Dilma Roussef no processo de impeachment. Simone Tebet fez uma pergunta bobinha a Lula, se ele se comprometeria a respeitar a paridade de sexos na formação de seu ministério. Lula, num ataque de sincericídio, acabou se enrolando tolamente. Estivesse bem assessorado, teria respondido que, enquanto a executiva do PT conta com 16 mulheres num total de 32 membros, o partido da ruralista inimiga dos povos originários conta com 3 mulheres, num total de 27 membros.
Performance em debate televisivo não revela nada acerca da história e do caráter das pessoas. Nesse universo paralelo, Lula é um ecossocialista, Ciro Gomes, um bolchevique revolucionário e Simone Tebet é, na verdade, Simone de Beauvoir.
Defendo o direito das pessoas votarem em quem bem entenderem no primeiro turno (vide meu artigo "Rita Von Hunty e o apagamento de diferenças"), o que levou leitores apressados a entenderem que eu seria eleitor de um dos pequeninos partidos de esquerda que não entraram na gigantesca aliança lulista. Não sou. Adoro o meu xará e colega de Letras na USP, mas não quero ter que votar no segundo turno. É preciso afastar o mais rapidamente possível o risco de transformação definitiva deste país num território miliciano em que prevalece exercício arbitrário das próprias razões. Não dá para arriscar uma terceira ou quarta via, a não ser que o representante da extrema-direita estivesse fora do páreo, cumprindo pena pelos incontáveis crimes de responsabilidade cometidos ao longo destes últimos três anos e oito meses. Mas, ainda que a coalizão "com STF, com tudo" fosse tigrão como foi com Dilma e colocasse fim a essa excrescência que levou o Brasil ao total descrédito no exterior, que nada fez para que fosse evitada a morte de centenas de milhares de pessoas durante a pandemia, que destrói a Amazônia, ataca os povos originários e mulheres, continuaria não tendo outra alternativa senão votar em quem tem mais chance de restabelecer um mínimo de respeito às instituições democráticas. Sem qualquer ilusão de que a sanha antiecológica dos ruralistas e a voracidade usurária dos bancos venham a ser contidas.
Guilherme Purvin, graduado em Direito e Letras pela USP, doutor em Direito do Estado pela mesma universidade, é advogado e escritor. Foi presidente do IBAP e coordenador geral da APRODAB. É editor-chefe da Revista PUB - Diálogos Interdisciplinares.
Tenho pleno acordo com o texto. A matéria ambiental poderia ter sido melhor explorada pelo Lula, justamente porque é o ponto fraco não somente de Bolsonaro, que explicitamente estimula a devastação, como de Simone Tebet e de Soraya, ambas ligadas ao agronegócio, e nenhum deles iria, nesta linha (salvo, talvez, o Ciro), falar do Código Florestal. O identitarismo despolitizado representado por Simone e, de certo modo, por Soraya, poderia ter sido abalado, mesmo, pela própria proporção, como bem recordado no texto, de mulheres nas executivas dos respectivos partidos e, por outro lado, por terem sido, ambas, Simone e Soraya, integrantes à primeira hora da base de apoio a Bolsonaro, em especial Soraya. Poderia ter, ainda, sido recordado o que passou…