- Carlos Marés -
A chuva persistente não permitia saber a hora exata daquele dia quente de outubro. O ano, isso sim se sabia, era 1842. A autoridade eclesiástica descia a pequena rampa de madeira que ligava o barco à terra firme com muito cuidado e levantando discretamente a barra da batina. O corpo avantajado e o sapato de cetim dificultavam o andar sobre a prancha. Um grande guarda chuva colorido protegia Sua Eminência que se apoiava num homem forte mas não muito acostumado em oferecer essas gentilezas. Conduzido em segurança, mas sem poder evitar respingos na batina e o emporcalhamento dos sapatos, foi acomodado numa improvisada carruagem que na realidade era uma carroça de carga com um toldo feito às pressas, com uma espécie de poltrona como assento.
Não era um bispo, descobriu-se depois, mas parecia e fazia questão que assim o considerassem. Era um vaga autoridade eclesiástica que vinha fazer uma misteriosa inspeção nas paróquias de Curitiba. A carruagem o levou direto à casa do mais rico comerciante de Porto de Cima, teria ainda uma longa viagem pela Serra do Mar, a pé, não estava disponível estrada carroçável. A subida, por exigência do próprio bispo, deveria ser feita em liteira, apoiado nos ombros fortes quatro escravos. Como ele mesmo não dispunha de escravos, nem de liteira e, embora levasse suas burras cheias, não pretendia usar os recursos próprios, pediria emprestado aos fiéis.
O comerciante o recebeu com exageradas mesuras acompanhado de toda família usando roupas feitas para a ocasião, talvez com exagerados degotes, como imaginavam que se usaria na metrópole, mas o bispo não repreendeu ninguém por isso. Estava cansado e depois de tomar um chá com bolachas recém assadas recolheu-se. O quarto era simples, mas havia sido cuidadosamente arrumado, tecidos, cortinas, poltronas, espaldar da cama, mesinhas de cabeceiras, tudo muito asseado e digno de um bispo, pelo menos assim imaginava o comerciante, que atribuiu a ausência de elogios ao fato do bispo estar acostumado com esses luxos.
O bispo, porém, dormiu até o outro dia. A chuva havia dado uma trégua e o sol já se levantava alto. No café da manhã mostrou a razão de sua corpulência, comeu todas iguarias e não apenas um bocado.
O comerciante e a família faziam planos enquanto o bispo descansava. Quem sabe o casamento da filha, quem sabe o batizado de um sobrinho de Antonina, tinham que aproveitar e promover uma festa local, ninguém poderia imaginar quando outro bispo passaria por ali. O bispo, porém, dormiu até o outro dia. A chuva havia dado uma trégua e o sol já se levantava alto. No café da manhã mostrou a razão de sua corpulência, comeu todas iguarias e não apenas um bocado. Ficou encantado com o bolinho de chuva, encharcado de graxa e melado de açúcar recém produzido. Deu duas notícias nos intervalos da comilança, primeiro, que não faria primeira comunhão, casamento ou batizado, tudo tarefa do pároco local, disse apontando para o jovem e magro padre de Antonina que estava a um canto e tinha vindo especialmente para saudá-lo. Segundo, anunciou que partiria para Curitiba dentro de uma semana, mas primeiro precisava conseguir uma liteira, acompanhantes, de preferência religiosos, disse olhando mais uma vez o padre, e escravos que carregassem a liteira e a bagagem, sabia que a subida era demorada e penosa.
As providências foram sendo tomadas. A liteira o comerciante conseguiu emprestado com um político de Paranaguá, que por sua vez tinha adquirido com dinheiro público e a usava em privado. Quem sabe emprestando a liteira tivesse seus pecados redimidos. O padre de Antonina foi buscar uns diáconos também em Paranaguá, entre eles um que conhecia o caminho e serviria de guia, iam armados, por se acaso encontrassem bandidos, índios ou bichos, explicou o padre. Faltavam os escravos para carregar a liteira. Relutante, mas temendo a ira divina, o comerciante cedeu quatro trabalhadores seus, negros fortes e resistentes e que seriam trazidos de volta pelos diáconos junto com a liteira, no prazo de um mês. Não teve coragem de insinuar ao bispo um valor, ainda que simbólico. O bispo, bom negociante, ainda levou de graça farnel para uma semana de viagem. Como precisava de quatro escravos para carregar a liteira, o excesso de bagagem que não pode ser acomodado com o bispo teve que ser carregado pelos quatro diáconos.
A partida aconteceu dez dias depois da chegada do bispo em Porto de Cima. A extravagante caravana de nove homens partiu para Curitiba com certo alívio, mas razoável prejuízo, do comerciante que não obteve sequer o benzimento de seus estabelecimentos. Os primeiros quilômetros foram quase um passeio, especialmente para o bispo. Margeando o Nhundiaquara a subida era leve e a paisagem deslumbrante, o rumor das águas, as pedras, os pássaros, a vegetação exuberante, tudo quase perfeito à exceção dos mosquitos e do sufocante calor que já se sentia apesar de tão cedo. Mas de repente, sem anúncio, a subida da Serra começou. Desapareceu o rio, mudou a posição da liteira que se inclinou para trás, causando um desconforto a mais para o já incomodado bispo. A trilha não permitia conduzir a liteira de lado, que talvez fosse mais confortável e o peso para os de trás aumentava. Os escravos escorregavam e proferiam palavras curtas e ininteligíveis, os diáconos praguejam, o bispo ia tenso, mas fingia que não ouvia. A marcha passou a ser muito lenta e o bispo começou a xingar os carregadores, a cor da pele foi o adjetivo mais gentil dentre os usados.
Não havia mais remédio, o bispo, talvez a contragosto, tirou do embornal, que carregava sempre junto de si, um delicado, mas efetivo relho, desses pensados para martírio humano, com pequenas contas de pérolas engastadas nas pontas de couro bem curtido. Com meio corpo para fora da liteira batia nas pernas dos escravos, primeiro de um lado, depois do outro, à frente e atrás e ameaçava mudar a parte do corpo e a força da mão se não andassem mais depressa e sem escorregar. O efeito das chicotadas era mais lentidão e mais escorregão. O diácono mais velho tentou alertar o bispo da inconveniência do método, mas não foi ouvido e, ao contrário, foi ameaçado com o relho e xingado.
A jornada continuou. Já tinham subido bastante apesar da lentidão. Uma pequena pausa para almoço ao lado de uma fonte imaculada de água que brotava da pedra e escorria farta. O descanso foi breve e os oito acompanhantes comeram pouco e com avidez enquanto o bispo foi comedido, afinal, vinha beliscando o farnel desde a saída. O reinício da caminhada se deu sob ameaça de farta distribuição de relhadas. A retomada foi revelando uma trilha cada vez mais difícil, a subida da Serra do Mar ia ao meio, faltava outro tanto para chegar ao primeiro planalto. A trilha ia ficando mais íngreme, mais escorregadia, mais perigosa. O guia pediu que parassem, não estava certo que o caminho fosse aquele. O bispo, vermelho de cólera, já não se continha no uso do relho, batia nos escravos, nos diáconos e só poupava a si mesmo em autocomiseração. O mais castigado dos escravos era o da direita da frente, em quem os golpes eram mais certeiros e mais fortes pela facilidade que tinha o agressor. Era o mais fraco dos quatro.
Com medo da reação do bispo, os quatro diáconos decidiram continuar por essa trilha que estava subindo e chegaria ao planalto de qualquer forma. Quando três quartos da subida já havia sido vencida, imaginava o diácono guia, numa curva fechada em pedra resvaladiça apareceu à frente ao lado direito uma escarpada pedra muito alta e do esquerdo um penhasco com pedras soltas e muita vegetação entre a qual se adivinhava um precipício sem fim. No exato momento em que o bispo aplicou uma chicotada forte na nuca do escravo da frente da direita, ele pisou em falso e escorregou. O escorregão, o movimento para se esquivar do golpe e o cansaço o fez perder o equilíbrio e cair soltando a liteira que foi ao chão derrubando os outros carregadores e tombando, rolando dois metros abaixo sobre uma grande pedra e suportado por uma desajeitada arvorezinha, parando na beira do abismo. Enquanto a liteira rolava com o bispo, o desafortunado escravo caia e batia a cabeça com força em uma pedra, deixando um rastro de sangue e, assim como a liteira, ficou pendurado num pequeno arbusto de frente para o precipício, agarrando-se à vida com as últimas forças.
Os diáconos correram para ajudar o bispo sair da liteira em péssimas condições, todo dolorido, rasgado, sujo, com o relho na mão e um pequeno corte na testa, o que lhe dava um ar ainda mais sinistro. Na subida de volta à trilha viu o escravo pendurado e, num gesto mais rápido do que poderia supor seu estado, o empurrou para a morte. Não se ouviu o grito, mas o baque seco de seu corpo primeiro nas pedras, depois nos galhos e, finalmente, muito distante, na terra. Estarrecidos, os sete acompanhantes restantes ficaram paralisados de horror e, já na trilha, primeiro ouviram um ranger, depois viram a liteira se mover devagar, girar sobre si mesma e despencar no desfiladeiro. O silêncio então se fez.
Passado o susto, os cinco religiosos trocaram olhares e descobriram que estavam sós. Os três negros haviam sumido no mato, nunca se soube como, e já não se ouvia qualquer ruído. Estranho, mas efetivo modo de conquistar a liberdade, comentaram, ninguém saberia ou poderia ir atrás. E agora? Perguntou o bispo com desespero e ódio no olhar, mantendo o relho na mão. Num impulso avançou para o diácono mais próximo e desfechou uma chicotada em pleno rosto, empurrando-o ao precipício ao gritos de sua culpa, sua culpa! O diácono, na tentativa de se defender dos golpes agarrou a mão do bispo, desequilibrou-se e ambos rolaram entre pedras e plantas. Dessa vez sim, se ouviu gritos, berros altíssimos que novamente terminaram em baques secos e depois em absoluto silêncio.
Muito tempo depois, tendo como únicas testemunhas os três diáconos de Paranaguá e quando o comerciante já havia perdido as esperanças de ter de volta seus escravos e o político sua liteira, e já estava em tratativas com um advogado para demandar a Igreja pelos prejuízos, chegou a Porto de Cima uma carta de Curitiba, assinada pelo pároco da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco das Chagas, perguntando se tinham notícias do representante do Santo Ofício que viria inspecionar o Além Serra e que nunca tinha chegado à Curitiba, apesar de anunciado.
2024
Explicação desnecessária: Essa história me foi contada por um rato de arquivos que, vasculhando os porões do Tribunal de Justiça do Paraná, entre muitos fardos de processos, encontrou a demanda do comerciante de Porto de Cima contra a Igreja. Teria lido a peça introdutória, mas não conseguiu mais localizar o velho processo quando solicitado por mim. Ficou apenas a memória daquela leitura, que me contou escandalizado.
Carlos Frederico Marés de Souza Filho, professor de Direito Socioambiental da PUC-PR, é Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública - IBAP.
Texto incrível. Prende a tua atenção até o fim.
Sensacional o texto de Carlos Marés! Imperdível.