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Privatização das praias e o patrimonialismo brasileiro em ação



-Leandro Ferreira Bernardo-


Ganhou destaque na sociedade nos últimos dias o avanço no Senado Federal da tramitação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 3, de 2022, que busca retirar do domínio da União os chamados terrenos de marinha e seus acrescidos, com sua transferência ao domínio de estados, municípios, foreiros, ocupantes atuais, e cessionários.

Os terrenos de marinha e seus acrescidos são reconhecidos pela Constituição da República como bens da União (art. 20, VII), estão discriminados pelo Decreto-Lei 9.760/46, e, ao contrário do que inicialmente pode ser imaginado, não se limitam às áreas de praias, pois alcança algumas áreas próximas a rios e lagos, até onde se faça sentir a influência das marés, conforme prevê a referida legislação.




Entende-se como imperioso alertar que medidas como aquela proposta na PEC  03/2022 não representam novidade na história brasileira. Muito pelo contrário, tal tentativa de mudança no texto constitucional aponta a dificuldade de superação de práticas autoritárias e patrimonialistas, que buscam favorecer grupos de interesses específicos à custa do patrimônio público e do interesse da sociedade.


O patrimonialismo, nas palavras de Lilia Schwarcz, na sua obra “Sobre o autoritarismo brasileiro”, é “resultado da relação viciada que se estabelece entre a sociedade e o Estado, quando o bem público é apropriado privadamente”. O patrimonialismo esteve e continua presente nas relações entre grupos poderosos e o Estado brasileiro e, nesse sentido, entende-se relevante resgatar alguns momentos da história da nossa legislação - sem qualquer intento de esgotamento – , que permitem apontar a força do patrimonialismo, sobretudo a partir da análise de importantes legislações que tratam da ocupação de áreas públicas no país, a fim de, ao final, poder demonstrar que a Proposta de Emenda Constitucional 3/2022 se insere na mesma tradição de alimentar práticas patrimonialistas sobre a coisa pública.


O presente texto deixa de analisar outros aspectos absolutamente relevantes que a eventual aprovação da referida PEC implicaria, como os impactos socioambientais, com os prejuízos aos biomas, espécies, ecossistemas, espaços especialmente protegidos – como áreas de preservação permanente, unidades de conservação –, para comunidades e populações tradicionais, indígenas e outros grupos que realizam a pescaria e outras atividades econômicas ao longo da costa brasileira.


Inicialmente, lembre-se que, em resumo, até meados do século XIX, as áreas territoriais existentes dentro do país pertenciam ao Império. Ainda regulavam as relações do Estado com a sociedade institutos arcaicos importados de Portugal, ainda no período colonial, como as sesmarias. O país estava ainda distante da lógica civilista de propriedade, que somente seria importada do direito europeu décadas depois. Nesse contexto, a concessão de títulos de posse não tinha por objetivo contemplar as populações mais pobres ou democratizar o acesso ao campo.


A lógica então vigente de que, como regra geral, todo o território pertencia ao Império foi somente alterada com o advento da Lei 601, de 1850, a chamada Lei de Terras, que dispunha, dentre outras coisas, sobre as terras devolutas no Império, bem como a forma de sua transferência ao patrimônio de particulares. A lei tratava da impossibilidade geral de aquisição de terras devolutas de outra forma que não fosse pela compra e apontava como punição ao seu descumprimento o despejo do possuidor ilegal, sem qualquer direito a indenização, bem como a aplicação de outras penalidades, como multas. Mais uma vez, o novo regime legal criou empecilhos para a ocupação de áreas por setores mais marginalizados da sociedade e jamais contemplou qualquer política de inclusão da população escravizada ou sua descendência.


É nesse contexto que surge a prática da “grilagem” de terras, com a falsificação de documentos, facilitada pela ausência de uma fiscalização adequada da lei, pela inexistência de um eficiente sistema de registros públicos, somados a uma conivência de setores do Estado, para fins de transferência ilícita de terras públicas ao domínio privado.


A Lei de Terras significou, também, a transferência de poderes territoriais em favor de províncias e Câmaras municipais, fator que somente concorreu para a redução e extinção de áreas sabidamente ocupadas por populações indígenas em favor de grupos poderosos no âmbito local ou regional.


Já no início do período republicano, a Constituição de 1891 (art. 64) transferiu aos estados a propriedade das terras devolutas, antes de titularidade do poder central do Império. Na prática, tal transferência viabilizou um avanço de poderosos grupos regionais sobre terras anteriormente de titularidade do Império e fortaleceu a consolidação do fenômeno conhecido como “coronelismo”, termo utilizado para identificar a existência, nas mais variadas regiões do país, de lideranças econômico-políticas que exerciam grande influência no rumo do que acontecia no seu entorno, num fenômeno muito bem caracterizado no clássico “Coronelismo, enxada e voto”, de Victor Nunes Leal ou em “Os donos do Poder: formação do patronato político brasileiro”, de Raymundo Faoro.


Nesse período a doação ou venda a preços ínfimos de áreas públicas em favor de grupos políticos locais em troca de benesses em favor dos representantes estaduais acelerou o processo de concentração de terras, em caminho contrário a uma ocupação mais igualitária do campo, como denuncia Alberto Passos Guimarães, em sua obra “Quatro séculos de latifúndio”.


Tamanha foi a sanha dos grupos organizados nessa lógica coronelista que não respeitaram outros limites impostos pela legislação em vigor, como a vedação de transferência para particulares de terras ocupadas por povos indígenas (art. 12 da Lei de Terras), e das faixas de fronteira, que continuou a pertencer à União (art. 64 da Constituição de 1891).


Apenas a título de exemplo, cite-se o Acórdão proferido pelo STF, em 1963, ao julgar a Apelação Cível 9621, relatado pelo Min. Antonio Martins Vilas Boas, e que reconheceu que o Estado do Paraná teria transferido a “non domino”, ou seja, sem que titular da área fosse, extensas faixas de terra da União localizadas na região oeste do estado.

Situações como estas criaram e ainda criam grave instabilidade jurídica e social, e vem impondo a necessidade de a União buscar por várias vezes a regularização fundiária de ocupantes de áreas que sempre pertenceram à União.


Em razão de ocupações irregulares sobre áreas da União, em diversas situações ao longo dos anos foram aprovadas legislações buscando a regularização fundiária, mediante alienação, como, p. ex., o Decreto-Lei 1.942/1982, que possibilitou a alienação de áreas da União a seus possuidores, no estado do Paraná, atingidos pelos efeitos da citada Apelação Cível 9621-1, julgada pelo STF, e a Lei 11.952/2009, que dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal, área de intensas e recorrentes investidas de ocupação sobre terras públicas nas últimas décadas. 


Em conclusão, é evidente que a tentativa da retirada dos terrenos de marinha e seus acrescidos da titularidade da União não atende  a um objetivo republicano e nem ao interesse da coletividade, mas, pelo contrário, ao interesses de grupos políticos e econômicos específicos, em uma renovada estratégia de atuação patrimonialista, como ocorrido no passado, nos exemplos acima citados. 

 

 

Leandro Ferreira Bernardo, Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da USP, Procurador Federal, membro do IBAP.

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