- RICARDO ANTONIO LUCAS CAMARGO - *
Não podemos ter a pretensão de saber tudo, porque nossos sentidos e nossa forma necessariamente nos limitam, diria o Conselheiro Acácio, mas de alguma coisa precisamos saber, para que possamos tomar decisões em torno da condução da nossa vida.
De alguma coisa, temos certeza pela experiência compartilhada, de outras, compartilhamos crenças, outras, ainda, ficam no campo das crenças individuais, e são as certezas, positivas ou negativas, que nos levam a escolher esta ou aquela direção para nossa conduta, em cada momento que vivemos.
Quanto aos pontos sobre os quais não se pode estabelecer certeza, existem duas atitudes: ou a certeza negativa ou a negativa da certeza e, a uma primeira vista, são difíceis de se distinguir.
A certeza negativa pressupõe a presença de circunstâncias que conduzam à negação de que tal ente ou situação existam (exemplo: o sétimo filho varão de uma família sem mulheres não vira lobisomem nas sextas-feiras; mulher que namora padre não se transforma em mula sem cabeça); a negativa da certeza impõe a dúvida que, pelos mecanismos da formação de crenças, que serão detalhados mais adiante, ou conduzirá a certezas - positivas ou negativas -, ou permanecerá no campo das hipóteses plausíveis (tal a minha posição, à medida que o tempo passa, a respeito da ideia de Deus) ou no campo da insolubilidade com o acervo de conhecimentos que se tem (origem do mundo, vida antes do nascimento ou após a morte etc.).
Quando se fala em experiência compartilhada, esta pode dizer respeito tanto à vivência de fatos brutos, físicos, como a queda dos corpos, a evaporação da água, a erosão eólica, por exemplo, quanto de fatos institucionais, que nascem a partir de convenções, como é o caso dos que dependem do significado que se atribui a determinados sinais para que eles nasçam, como, por exemplo, o prestígio ou o opróbrio que recai sobre um indivíduo, o conferir-se-lhe ou negar-se-lhe personalidade.
Quanto às crenças, resta saber onde está a respectiva origem: se está na experiência, e esta tiver como repetir-se, ou pelo menos ter a sua ocorrência reconstituída, é perfeitamente passível de debate em público, e submete-se ao crivo "verdade/falsidade".
Se estiver na própria subjetividade, e somente nela, sua comunicação é puramente confessional, e fazer com que outrem, pura e simplesmente, a ela adira, ao argumento de se estar com a verdade, é uma violência.
A primeira é própria do conhecimento científico, que se vocaciona a um convencimento universal, precisamente por isto: é a experiência ao alcance da controlabilidade, distinguindo entre o fato aleatório, contingente, anedótico, e o fato regularmente verificável em dadas circunstâncias de tempo, espaço, independentemente dos gostos pessoais dos debatedores.
A segunda é uma certeza em que o gosto pessoal é protagonista – “creio porque me dá esperança”, por exemplo -, e quando se pretende impor a outrem, vem necessariamente acompanhada da projeção da personalidade do mais forte sobre os demais.
Dito de outro modo: a questão do valor da proposição científica está precisamente na submissibilidade ao debate público, pela possibilidade de se reconstituir o fato a que se refira.
Por isto mesmo que ela pode ser provada incorreta ou falsa, sem a pretensão de infalibilidade, diferente das proposições fundadas na pura subjetividade, na fé – “é verdadeiro porque creio”, e não “creio porque é verdadeiro”, vez que, neste último caso, é preciso mostrar onde está a veracidade de acordo com critérios comuns aos interlocutores -, e que vai ter a sua projeção mais radical no “crê ou morres”.
É importante salientar que não estou a dizer que a crença puramente subjetiva, em si mesma, seja um mal ou que dela não possam advir coisas boas ou úteis: basta lembrar que, se não existisse a fé nos deuses do Olimpo, não conheceríamos as esculturas gregas; ao catolicismo devemos a Capela Sistina, a Catedral de Notre-Dame, os Profetas de Congonhas do Campo, um sem-número de belas peças musicais de Palestrina, Vivaldi (que, por sinal, era padre), José Maurício Nunes Garcia; Bach é fruto do protestantismo.
O que estou a dizer é outra coisa: que às proposições fundadas na pura subjetividade, o máximo que se pode fazer, sem violência, é dar a quem não as esposa, notícia de que elas existem, mas o dá-las como verdadeiras ou críveis depende exclusivamente da disposição de cada qual para nelas acreditar, disposição, esta, que traduz uma experiência personalíssima, intransferível, e pretender impô-la a outros não deixa de ser uma negação da própria personalidade desses outros, como se estes se pusessem numa situação hierárquica inferior, na escala da humanidade.
Num país como o Brasil, cuja população é majoritariamente inculta e propensa a todo tipo de crendice que lhe dê aquele autoengano que recebe o nome eufemístico de “esperança” (não é casual que esta fosse habitante, no mito grego, da caixa portada por Pandora), é ainda mais fácil do que o foi na Alemanha e na Itália do pós-I Guerra levar a cabo o culto à força bruta, à crueldade contra os mais fracos, à subserviência aos poderosos, amplamente passível de exploração por quantos pretendam estar no topo da hierarquia entre os seres humanos e vejam qualquer negação dessa hierarquia como uma verdadeira blasfêmia, uma agressão ao cosmos.
O exemplo sempre citado de “mártir da sabedoria”, Sócrates, não se incomodava tanto com a ignorância pura e simples quanto com as crenças embasadas na mera subjetividade, porque a ignorância pode ser vencida no momento em que se obtém o conhecimento, ao passo que a certeza gerada pela crença pura e simples rejeita mesmo a reconstituição do fato que a contesta, simplesmente porque a existência daquilo em que crê aquele que esposa tal crença vem a dar-lhe esperança ou a justificar sua atitude diante do mundo.
Aquele que conseguiu romper as correntes e ver o que existia fora da caverna, como se lê na alegoria estampada no livro VII da República de Platão, arrisca-se ao decidir voltar a ela, pois tem de estar disposto a enfrentar até mesmo a possibilidade de ser assassinado, a despeito de ter inclusive a chance de escapar, já que os possíveis assassinos estão acorrentados.
Neste sentido, a possibilidade que se abria para Sócrates fugir de sua condenação, pelo fato de estar em uma caverna mal vigiada e sem porta, e da qual abre mão, segundo a narrativa que o mesmo Platão faz em seu Críton, não deixa de estar estampada no final da alegoria da caverna.
Milhares de anos depois da morte de Sócrates, a postura dos membros do Tribunal Eclesiástico, recusando-se a olhar pelo demoníaco telescópio, que poderia contradizer as passagens das Escrituras referentes ao movimento do Sol e dar razão ao infame réu Galileo Galilei, fala por si, e é repetida seguidas vezes.
Galileo, justamente por sua condição de ser humano comum e, portanto, não ter vocação para mártir, abjurou -- fez o que Max Weber em A ciência como vocação chama de "sacrifício do intelecto" -- diante dos instrumentos de tortura que lhe fez mostrar o Papa de então, embora a sua atitude de negação não alterasse a realidade que o seu aparelho lhe revelara, isto é, que não era o Sol que gravitava ao redor da Terra.
O ser humano comum não é obrigado ao heroísmo, e é exatamente por isto que esta conduta costuma ser louvada: justamente porque traduz uma negação de si próprio, que vai contra a tendência normal de cada ser vivo, que é a de autoafirmar-se.
Entretanto, a partir, justamente, do texto do Rui Vianna que inspira estas glosas (O império da boçalidade? Acessado em 17 dez 2020), faço essas reflexões diante de afirmações no sentido de que “um bom patriota rejeita violências como a máscara e quer continuar a ganhar a vida com o suor de seu rosto”, “a COVID19 é uma mentira inventada pelos comunistas para impedir os fiéis de irem à missa louvarem a Deus”, “só os maricas deixam de sair e viver normalmente” e outras que eu bem que gostaria que fossem simples caricaturas.
O retorno do discurso do “bom patriota”, disposto a qualquer sacrifício para que “o vermelho não conspurque nossa bandeira” – inclusive o de se contagiar por um vírus que preocupa a totalidade do mundo civilizado -, aliado ao fundamentalismo religioso, evoca o pior da Idade Média ocidental – falo desta porque os hoje atrasados islâmicos eram, então, muito avançados sob o ponto de vista do conhecimento científico, ao ponto de Frederico II, da Sicília, havê-los acolhido em sua Corte para fazer com que esta se tornasse um oásis de luz em meio às trevas - e legitima o pressuposto do egoísmo como “vício virtuoso”, como se pode verificar no caso do indivíduo que, ao fundamento de não estar doente, dar como irrelevante o poder ser um agente transmissor.
Muitos desses “bons patriotas” também afastaram seus parentes e, para compensarem o seu vazio, para não se verem compelidos a tirar a própria vida, dizem que estão a serviço de Deus e da Pátria...
E é a partir daí que a reflexão sobre a origem das certezas se põe na ordem do dia...
Ricardo Antonio Lucas Camargo - Professor nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professor Visitante da Università degli Studi di Firenze – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP.
Agradeço à Professora Elizabeth Harkot de la Taille o comentário, sobretudo tendo em vista que até mesmo no âmbito do saber especializado tem-se visto realizar o "sacrifício do intelecto" em nome da condição de "bom patriota", "bom fiel", e outros tantos dos epítetos com que se autoelogiam aqueles que têm um superlativo amor por integrarem a segurança do que primeiro Schopenhauer chamou "rebanho", conceito empregado com maior frequência por Nietzsche. Um médico bolsonarista convicto foi capaz de dizer, ainda hoje, que, para os 300 que ele receitou cloroquina, esta deu certo e nenhum foi para a UTI. Perguntei, diante disto, quantas pessoas ele atendera, e ele me falou que somente olhando nos prontuários. Disse-lhe eu, então, que, considerando o tempo…
A difícil batalha entre as certezas e a crenças, entre o saber e o crer, tem uma discussão aprofundada no texto de Ricardo Camargo.
Leitura impwedível. Parabéns!