- Carlos Marés -
A Reforma da estrutura governamental do Estado Brasileiro que está sendo implementada tem grande potencial para violar e ferir os direitos dos povos indígenas, quilombolas e demais tradicionais, assim como da natureza, chamada juridicamente de meio ambiente.
É claro que pode se argumentar que a mudança é apenas nas competências de quem promoverá as ações para respeitar, proteger e demarcar as terras. Mas, pela incoerência interna das decisões, dividir ações de órgãos como a FUNAI, INCRA, Serviço Florestal, etc. e pelos discursos de posse e declarações de Ministros e Presidente fica difícil acreditar que seja apenas a operacionalidade afetada.
Na questão indígena é evidente a intenção negativa. O Brasil foi o primeiro país da América a ter uma agência estatal para cuidar da questão indígena, no começo do século XX. A política exercida pelo órgão e determinada pela legislação era a de integração individual, isto é, políticas que favorecessem os indivíduos indígenas a deixarem de ser integrantes de uma coletividade para serem trabalhadores nacionais, até 1988, com a Constituição. Neste sentido foi, também, toda a política dos órgãos internacionais, especialmente a Organização Internacional do Trabalho, até 1989, com a Convenção 169. A mudança de orientação se deu na mesma época não por coincidência, mas porque era visível o reconhecimento internacional dos direitos dos povos chamados de tradicionais ou internacionalmente chamados de indígenas e tribais.
Até o final da década de 80, portanto, a política continuava sendo colonial, a transformação dos indígenas pela integração ao sistema majoritário da colônia. A mudança foi profunda e clara: aos indígenas, tribais, tradicionais ou que nome se lhes ponha, foi reconhecido o direito de continua a ser comunidades, produzindo e existindo segundo seus “usos, costumes e tradições”, numa terra determinada e decidindo sobre seu futuro. Agregada, e reforçando este direito, a necessidade de serem consultados sobre tudo que lhes diga respeito e afetem, especialmente ao seu futuro.
O discurso oficial do atual governo é de que os indígenas devem ser integrados, deixando de índios, como repetição do velho discurso colonial. Este discurso é inconstitucional e contrário a normas internacionais que o Brasil subscreve, assim como violador das Declarações dos Direitos dos Povos Indígenas da ONU e da OEA. Opinião, diga-se de passagem, que não consultou os povos, substituindo-os, como sempre se fez no colonialismo.
Sobre a demarcação de terras indígenas
O conceito de Terras indígenas está escrito na Constituição: “São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”, art. 231, § 1º da Constituição de 1988. O caput reconhece “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”
Portanto, a demarcação das terras indígenas é uma obrigação do poder público federal que ao fazê-la não torna a terra indígena, porque o direito é anterior a ela. Aliás, só há obrigação de demarcar porque a terra já é indígena, originariamente. Isto quer dizer que a demarcação é um ato técnico, secundário, necessário para proteger e fazer respeitar. É, também a forma de tornar público o conhecimento das fronteiras das Terras Indígenas para que ninguém, sem sua autorização, nelas possa entrar e explorar qualquer recurso.
O Direito Nacional e Internacional (Constituição e Convenção 169 da OIT) reconhecem aos povos indígenas o direito à terra independentemente de qualquer providencia ou ato administrativo. Como as forças contrárias aos indígenas não podem mudar esta realidade, teriam que mudar a Constituição e a ordem internacional, atacam a demarcação, que é um ato administrativo, e enganosamente divulgam que se não houver demarcação não haverá terra indígena. É falso, a terra indígena existe independentemente de demarcação, existe, e por existir, o poder público é obrigado a demarcá-la.
Esse ataque à demarcação, ardiloso e enganoso, vem sendo objeto de muitas iniciativas da bancada anti-indígena. Assim, tramitava no Congresso uma emenda Constitucional que remetia a competência para a demarcação ao Congresso, isto é, a demarcação deveria ser feita não pela administração pública, mas pela casa de leis. Como é um procedimento técnico e prático, demarcar terras quer dizer colocar estacas, marcas geodesicamente determinadas, é evidente que o projeto era enganoso e existia para bloquear as demarcações.
A nova estrutura do governo entrega a tarefa prática, obrigação constitucional do Poder Executivo Federal, de demarcar terras indígenas ao Ministério da Agricultura, embora o órgão indigenista ainda chamado de FUNAI, tenha sido deslocado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Separar a demarcação das ações de políticas indigenistas é, obviamente um erro, ou uma intenção. O processo de demarcação é complexo, longo e culmina com a homologação do Presidente da República, depois de analisado pelo Ministro da Justiça. É realizado com trabalho de campo por equipe técnica nomeada especialmente para esse fim, acompanhada por experientes funcionários da FUNAI. Como isso será feito no Ministério da Agricultura? Quem estabelecerá as prioridades sempre determinadas pelo risco das comunidades? É claro que as respostas com detalhes não poderiam estar na Lei que alocou a tarefa a um Ministério pouco afeto, quem sabe até desafeto, aos direitos indígenas, a regulamentação virá por decreto. Mas, ou há um erro e o Ministério apenas fará a trabalho da Funai, se socorrendo de seus técnicos, o que é uma distorção administrativa, ou, o que é mais provável, há a intenção de não demarcar nada, como aliás declarou o atual Presidente em sua campanha eleitoral.
O mais provável, portanto, é que a mudança seja para paralisar as demarcações, já que a intenção é o retorno ao colonialismo integracionista. Esta política, por certo violadora dos direitos humanos, pode levar do genocídio de povos, como já houve no Brasil e é tipificado internacionalmente, que é a eliminação física de um grupo até o etnocídio que é eliminação de uma etnia ou cultura.
Se assim é de grave a situação dos povos indígenas, tão grave ou ainda mais, é a situação dos quilombolas e demais povos tradicionais e da natureza.
Carlos Frederico Marés de Souza Filho, ex-presidente da FUNAI, é membro do Conselho Editorial da Revista PUB - Diálogos Interdisciplinares e professor de Direito Socioambiental da PUC-PR. Diretor do IBAP e da APRODAB.
Professor Marés, obrigada pelos constantes ensinamentos