-M. MADELEINE HUTYRA DE PAULA LIMA-
É notória a versatilidade do trabalho de Guimarães Rosa. O conto “O Recado do Morro” foi estudado sob o aspecto geográfico por Carlos Magno Ribeiro , identificando, de início, três paisagens notáveis ao longo da viagem pela região de Minas Gerais descrita na obra de Rosa: o relevo cárstico das proximidades de Cordisburgo, pequena cidade mineira; um morro solitário - o da Garça -, no centro geográfico do Estado; e as extensas superfícies planas seccionadas por amplas depressões, revestidas, outrora, de cerrados, veredas e buritis, hoje, em grande parte, de Eucaliptus, Pinus, soja, no extenso noroeste mineiro.
A drenagem fluvial e a subterrânea são elementos importantes na descrição da paisagem. Um curso de água, subaéreo, no fundo de um vale cego, de repente, desaparece (em um sumidouro), passa a correr subterraneamente, pode mudar de nível e caminho, a depender de fatores estruturais e reaparecer a alguma distância (ressurgência). Nesse caminho oculto, "suterrão", ele passa por grutas e cavernas, onde, depois, se formam os espeleotemas (RIBEIRO, p. 6).
A vegetação é descrita como mata de porte médio, de árvores esguias, que perde quase totalmente as folhas no inverno e, por isto, é denominada mata seca, embora em áreas do domínio do cerrado, ela está intimamente relacionada a condições de solo específicas. Caracterizada por um estrato arbóreo aberto, com certa distância entre as árvores que raramente ultrapassam os 20 metros de altura a cobrir “um sub-bosque arbóreo-arbustivo e um herbáceo pobre e rarefeito, descontínuo, por causa dos afloramentos rochosos”. São inúmeras as espécies de árvores: angicos, aroeira, cedros, paineiras barrigudas, as gameleiras com suas raízes possantes e longas que penetram nas fendas das rochas ou aderem firmemente aos paredões. No solo, há muitas bromeliáceas, como o gravatá, algumas delas epífitas, orquidáceas, cactáceas. O solo que mantém essa flora, embora fértil, é descontínuo, restrito às fendas e concavidades, pouco espesso e submetido a forte ressecamento no final da estiagem. A drenagem superficial canaliza para as grutas sedimentos e restos animais que encontram aí condições favoráveis para a fossilização (RIBEIRO, p. 6).
"Lá - estava o Morro da Garça: solitário, escaleno e escuro, feito uma pirâmide. [...] E que foi que o Morro disse, seu Malaquias, que mal pergunte?" (ROSA, pp. 24-25). O Morro fica no município de Garça, a poucos quilômetros de distância da sede municipal e acompanha a paisagem, por longo percurso, para quem viaja pela rodovia BR 135, no trecho Belo Horizonte - Montes Claros e, como descreveu Rosa, “sempre dava ar de estar num mesmo lugar, sem se aluir [... ]" (ROSA, p. 43) e dominava o cenário plano, como imponente pirâmide (RIBEIRO, p. 7).
Em “O léxico de Guimarães Rosa”, elaborado por Nilce Sant'Anna Martins (2001), a palavra "gerais" foi apresentada como "campos do Planalto Central; lugares desertos e intransitáveis no sertão do Nordeste; campos cobertos de erva ou grama; campos extensos e desabitados" (RIBEIRO, p. 10). Para evitar erros de simplificações, há que se referir à existência de chapadas sobre rochas não sedimentares, quartzíticas ou cristalinas, como o Espinhaço, o Planalto de Brasília, a Serra da Canastra. Assim, esse grande domínio, observado no seu conjunto, constitui, segundo o geógrafo Ab'Saber (2003, p. 122), uma extensa superfície homogênea massiva, de planaltos sedimentares ou de estruturas mais complexas nivelados por aplainamentos, com altitudes médias de 600 a 1.000m, "um mar de chapadões" com cerrados interpenetrados por florestas galerias opondo-se a um "mar de morros" originalmente florestados (RIBEIRO, p. 11). Entre esses planaltos mais elevados, separando-os, estão as grandes depressões interplanálticas. As extensas superfícies aplainadas são revestidas pelos cerrados em suas múltiplas fisionomias: cerradão, cerrado, campo cerrado, manchas de matas (florestas tropicais) (RIBEIRO, p. 12).
Mesmo ressentindo-se, as árvores e arbustos do cerrado não sofrem deficiência hídrica e não perdem muitas folhas na estação seca, pois o desenvolvimento do seu sistema de raízes atinge horizontes mais profundos dos solos espessos, onde há água disponível no auge das secas. O estrato herbáceo-graminoso, de raízes curtas, resseca e torna-se matéria inflamável que alimenta queimadas anuais sucessivas. Muitas plantas arbustivas e herbáceas desenvolvem órgãos subterrâneos que brotam assim que chegam as chuvas, ou até mesmo antes. As matas ciliares e as veredas permanecem verdes o ano todo.
O resultado da elevada pluviosidade, embora concentrada, das chapadas arenosas e planas que favorecem a infiltração da água em detrimento do escoamento superficial das camadas de rochas menos permeáveis intercaladas a mais permeáveis são os lençóis subterrâneos que alimentam cursos de água perenes e depressões úmidas, até mesmo nas superfícies elevadas - as veredas. Esta característica é citada no texto: "e na chapada a chuva sumia, bebida, como por encanto, não deitava um lenço de lama, não enxurrava meio rego" (ROSA, p. 118). Sabidamente, o Planalto Central é, pela sua posição geográfica, pelas altitudes, estrutura, litologia e clima, um grande dispersor de água e dá origem a inúmeros grandes rios das bacias do São Francisco (Paracatu, Urucuia, Carinhanha), do Paraná (Paranaíba, Verde), do Tocantins e Araguaia, afluentes do Paraguai, da margem direita do Amazonas. E as veredas são, entre muitas outras, nascentes de córregos que alimentam rios formadores das grandes bacias hidrográficas brasileiras.
Questão premente é a acelerada degradação dos cerrados e das veredas, pelas queimadas, reflorestamentos, monoculturas e, no caso das veredas, pelo assoreamento, abertura de estradas, construção de pequenas barragens para captação de água, comprometendo nascentes, a flora e a fauna. Trabalhos de vários gêneros têm discutido, comprovado e denunciado, as impressionantes alterações ambientais e seus impactos imediatos nas veredas (Boaventura, 1988; Melo, 1992; Moreira, 2005) (RIBEIRO, p. 14)
A poética linguagem de Rosa descrevia as veredas: "E o coração e corôo de tudo, o real daquela terra, eram as veredas vivendo em verde com o muito espelho de suas águas, para os passarinhos, mil -- e o buritizal, re-alegre sempre em festa, o belo-belo dos buritis em tanto, a contra-sol" (ROSA, p. 118). E, ainda, "veredas de atoleiro terrível, com de lado a lado o enfile dos buritis, que nem plantados drede por maior mão [...]"(ROSA, p. 46).
Como uma variação das matas galerias, as veredas constituem um sistema particular no domínio dos cerrados, tendo vários significados, segundo Ribeiro (p.15). Geomorfológico, porque são depressões suaves, a quebrar a horizontalidade das superfícies aplainadas, quando se formam nos topos. Hidrológico e hidrográfico, porque as veredas delatam a existência de água na superfície ou na subsuperfície, criam um habitat diferente e possibilitam a dessedentação da fauna. São brejos ou filetes de água corrente como nascentes de rios. No alto das chapadas, é a única água disponível para a fauna e para o viajante. Florístico, porque abrigam uma flora própria, distinta daquela dos cerrados e cerradões vizinhos, e são caracterizadas, muitas vezes, pela majestade dos buritis em alinhamentos ao longo do eixo de drenagem. No entorno da vegetação arbóreo-arbustiva, em solos mais arenosos, formando anfiteatros nas cabeceiras ou extensos campos nas bordas, sobressaem formações herbáceo-graminosas. Estas, segundo Ab'Saber (2003), Melo (1992) e Moreira (2005), são verdadeiros corredores naturais para a fauna dos cerrados e para o próprio homem (tropeiros, viajantes) – derivando seu nome, veredas (RIBEIRO, p. 15).
Está esboçado, assim, o imenso domínio dos cerrados, em cujo interior encontram-se os gerais, as veredas, os pés de serras, tão caros para Guimarães Rosa e assim bem descritos. Na análise geográfica do cenário, Carlos Magno Ribeiro lembra que é “possível compreender melhor o ambiente que não só envolve mas interfere na narrativa” e que aquelas paisagens mineiras estão sofrendo transformações drásticas pelo homem, muitas vezes, irreversíveis, pelo ritmo acelerado de destruição dos cerrados, das veredas e de muitos afloramentos de calcário e formas cársticas (RIBEIRO, p. 3).
Por isto mesmo, a beleza poética do conto de Rosa e a geografia ambiental de Ribeiro são um convite para reflexão e, quem sabe, para conhecer pessoalmente os locais descritos e outros ainda espalhados pelo Brasil nas regiões do bioma Cerrado, inclusive no Estado de São Paulo.
M. Madeleine Hutyra de Paula Lima é advogada, mestra em Direito Constitucional e mestra em Patologia Social e associada do IBAP.
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