-Ricardo Antonio Lucas Camargo-
Diante dos termos que se têm posto, nos últimos tempos, sobre as eleições na Venezuela, a impressão que surge é que toda a população da América Latina, em particular a brasileira, está como num romance de Joseph Conrad, em que o ser humano comum, sem nenhum traço de heroísmo épico ou extrema vilania, de repente se vê jogado em uma situação excepcional, em que é chamado a tomar decisões, por menores que sejam as repercussões de tais decisões sobre o tema em questão, embora possam comprometer os passos ulteriores de sua própria existência e dos que com ele se relacionem.
Parece, segundo um senso comum que se está a construir a passos de ganso, que todo democrata tem o dever de atestar a existência de fraude nas eleições venezuelanas, sustentar a necessidade de intervenção internacional, bélica se possível, para derrubar o tirano Maduro e empossar o campeão da liberdade Eduardo, interpretar qualquer postura de Chefes de Estado latino-americanos – em especial, o brasileiro, pela sua dimensão territorial e pela sua maior pujança econômica em face dos demais integrantes deste conjunto – que não siga neste trilho como uma declaração de hostilidade, quando não de guerra, contra o mundo livre.
Quando se vai falar a respeito dos temas de interesse público, imediatamente vem à tona o próprio conceito de “agenda setting”, construído pelos sociólogos Maxwell & McCombs, que é precisamente o corte que os meios de comunicação social costumam fazer em termos do que, num determinado período, será considerado relevante para as discussões e, mesmo, como as pessoas deverão posicionar-se sobre esses temas.
Para os crentes nas virtudes do “agir comunicativo” habermasiano, cada uma das proposições trazidas no denominado “mercado de ideias” – esta expressão não é, claro, de Habermas, embora a presença constante dela na literatura especializada autorize o seu emprego – será tomada a sério, pesada pelo interlocutor e este irá verificar onde está a procedência ou a improcedência respectiva e irá expor respeitosamente suas razões.
Entretanto, os debates, na realidade, não se travam, em regra, nesses termos respeitosos, mas sim nos termos da definição de “lados” – o lado do “bem” e o lado do “mal” -, de tal sorte que aventar aspectos que podem estar presentes nos assuntos suscitados e que eventualmente comprometam os interesses de quem se considera investido na condição de separar o joio do trigo, normalmente, os anunciantes das empresas de comunicação, tema que foi aventado pelo Professor Washington Peluso Albino de Souza quando participou da comissão encarregada de estudar a revisão da Constituição brasileira de 1988 durante o Governo Itamar Franco, deixando claro, entretanto, não se tratar de defender qualquer tipo de controle prévio do conteúdo do que se viesse a veicular.
Os desastres ambientais, ocultadas cuidadosamente as causas que trariam um argumento de fato contra o dogma do caráter benéfico de qualquer estratégia que conduza à redução de custos e aumente os lucros dos agentes econômicos privados, e ipso facto, do caráter maléfico de qualquer medida que sequer estabeleça condicionamentos para essas estratégias, o espaço privilegiado que se oferta aos economistas que nos querem convencer de que a causa da inflação é que o salário pago à média dos brasileiros é nababesco em face de juros franciscanos, quase caritativos, dos contratos de financiamento bancário, a ênfase que se tem dado ao caráter “exagerado” das críticas à atuação de Israel na Faixa de Gaza, qualificando-as como manifestação inequívoca de “antissemitismo”, “apologia ao terrorismo” e, mesmo, “tardonazismo”, dando por inexistentes até mesmo pronunciamentos desses críticos realizados contra o sequestro dos reféns israelenses, tudo isso são exemplos inequívocos do quanto, nos tempos atuais, tem sido fácil ceder à tentação de seguir a lógica do mais sofisticado dos juristas do III Reich – Carl Schmitt -, segundo a qual a grande operação a ser levada a cabo pela condução dos destinos da humanidade é identificar o inimigo comum como ponto de ligação entre os vários interesses que gravitam em torno de determinada causa.
Quanto ao tema da vez: 1- meus pronunciamentos sobre a falta de compromisso de Maduro com os direitos humanos datam de 2014, e constam de coletânea de debates publicada pelo Sérgio Fabris em 2017; 2- a régua moral de quem considera uma questão de honra criar-se uma santa aliança democrática entre os países para derrubar Maduro é, entretanto, flexível quando se trata, tomando em consideração só a América Latina, do longevo e sangrento regime de El Salvador; 3 - a postura brasileira, alinhada com o México e a Colômbia, é coerente com a sua prática internacional em 135 anos de República, inalterada mesmo com as mudanças de regime e de Constituição verificadas ao longo do século XX e as crises da segunda década do século XXI, não se confundindo com manifestações dos partidos; 4 - Javier Milei, hoje, representa, para o Ocidente, o que foram Fulgencio Batista em Cuba, Salazar em Portugal (com a diferença de que este era um cultíssimo catedrático) e Franco na Espanha, ou seja, integrante do clube dos antidemocratas amigos do Mundo Livre, que podem ser deixados a oprimir seu povo em paz; 5 - a ocorrência ou não de fraude deve ser realizada por terceiro imparcial, mediante regular contraditório, segundo a tradição democrática ocidental, que já superou a medieval opção pela cruzada.
Ricardo Antonio Lucas Camargo , Professor nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professor Visitante da Università degli Studi di Firenze – Integrante do Centro de Pesquisa JusGov, junto à Faculdade de Direito da Universidade do Minho, Braga, Portugal – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP.