-ELIANA HABERLI SILVA-
Nesta parte da zona oeste da cidade, onde moro, as incorporadoras passaram a boiada com força desproporcional na paisagem urbana, espalhando a rodo enormes construções. Da noite para o dia pipocaram prédios altíssimos por aqui, como se fossem botecos que irrompem em cada esquina. Mas não são modestos botecos, são pretensiosas torres de apartamentos residenciais. Na pandemia, as incorporadoras agiram sem dó no Butantã e nas últimas franjas de Pinheiros, locais que tinham sido parcialmente poupados. “É o capitalismo”, ouvi alguém dizer.
Resolvi, assim, fazer uma visita ao capitalismo. Isso mesmo, visitar esse figurão que manda na vida da gente. Bater um papo, tomar um cafezinho, por que não? O tema da conversa que eu almejava era “paliteiros de concreto dominando a paisagem urbana sem mais nem menos”. Afinal, se é o capitalismo é que manda na cidade, resolvi ponderar com ele que a cidade é minha também.
Os novos edifícios têm gosto meio duvidoso – estridentemente altos, excesso de vidros esverdeados, varandas ostensivas e as famosas piscinas como cartão de visitas, mais para mostrar do que para usar. Ao lado dos gigantes de cimento, os demais prédios ficaram pequenos, inferiorizados. A autoestima dos mais antigos caiu tanto que eles se tornaram pichados e feiosos. Não tiveram força para se defender dos ataques, deu pena. Os outros edifícios, bem-educados nos seus 12, 13 andares, que estavam no topo da cobiça dos consumidores, perceberam a ameaça dos novos grandões e tentam manter a pose, à medida do possível.
Disse ao capitalismo que já temo as vibrações da gente que vai morar nesses prédios novos. Gente que tem arrepio de coisas como patrimônio histórico e preservação cultural. “Bem”, respondeu o adversário “Vai fazer o que? A população cresce, uma parcela da classe média ganha poder econômico, faltam moradias no Brasil, tem que construir prédios de apartamentos, não tem outro jeito. ”
Eu concordei em parte, mas procurei mostrar o outro lado, as belas visões urbanísticas com que sonho. Vejo prédios residenciais de bom gosto, com mais cores e menos vidros, distribuídos em grandes quadras com jardins internos e espaços livres. São prédios com alturas graciosas, oito andares em vez de 29. Da janela, você vê uma paisagem que faz bem ao senso de proporções da alma. No meio dessas construções do meu sonho crescem árvores, a Natureza é sempre convidada. Nas altas construções que invadiram o Butantã e partes de Pinheiros, (como numerosos outros bairros) a Natureza não é bem-vinda, expliquei. Ela é obrigada a se contentar com o jardinzinho mentiroso ao lado do stand de vendas do apartamento decorado.
O capitalismo me olhou com impaciência e incredulidade. “Natureza, do que você está falando? Viu a feiura que era o espaço que invadi? Casa velhas, lojas antigas, terrenos valiosos ($$$) com construções sem valor em cima, que é isso? ” E continuou sua pregação. “Quadras de apartamentos para uma comunidade? Os que vão comprar os apartamentos que estou implantando não querem isso, não tem o menor interesse em 'comunidades' seja de que tipo for. Resolvem seus assuntos individualmente! ” E ainda afirmou que manda fazer apartamento decorado com jardinzinho falso, sim, pois é disso que seu público gosta.
Não concordei, é óbvio, mas percebi que tinha cutucado o interlocutor em um ponto sensível. “Eu movimentei a economia na pandemia, eu dei empregos “, continuou ele. Eu ia comentar sobre os altos investimentos que ele usou, mas ele me interrompeu de novo. “Os investimentos não são meus, é do conjunto da economia, é do imposto que você paga. Eu pego o dinheiro dos outros, não tem nada privado entre os empreendedores, a gente não aplica um tostão próprio. ”
Analisei os empregos que o adversário se vangloriava de ter criado na pandemia, aproveitando as observações de um amigo de Pinheiros, que da sua janela enxerga uma alta construção se agigantando a cada dia. “Os empregos são de baixa qualidade, tem guindaste e máquinas modernas, mas o pessoal carrega sacos de cimento nas costas e ganha pouco”, disse. “O que você quer? ” respondeu o capitalismo. “Que eu conserte o Brasil? Tem gente carregando peso nas costas aqui desde a colonização portuguesa, antes de eu ter nascido. ”
Aí ele é que tocou um dos meus pontos sensíveis. Há outras formas de agir e progredir”, retruquei. Podemos mudar, podemos diminuir a desigualdade, até em países capitalistas isso acontece. Na Escandinávia, alguns modelos sociais... O capitalismo se enfureceu, ele detesta ouvir falar de socialdemocracia. Na verdade, até a palavra democracia incomoda o figurão. Ele também não tem a menor paciência com exemplos como a Green Line de Nova York, (o minhocão da metrópole que foi transformado em corredor de passeio) e outras invenções que distribuem o espaço da cidade de maneira mais igualitária. Ele disse exaltado que às vezes é obrigado a fazer concessões, que as pessoas fazem críticas demais, as universidades, a imprensa.
Não tinha mais clima para continuar a conversa. Deixamos as xícaras de café, já frio, pela metade. Mas meu adversário não perdeu a oportunidade de me dar mais uma estocada. “Você quer bairros planejados por 'políticas públicas', não é? Pode esquecer. Meus representantes querem aproveitar os terrenos que se valorizaram, não queremos planejamento nenhum, principalmente se for planejamento público. Nós forçamos a mudança das leis urbanas que impõem limites de altura e ocupação. Nada de Escandinávia, aqui é o Brasil, só tem lei flexível. ”
Minha diplomacia fraquejou. Pensa que eu não sei, seu egoistão? Disse a ele que conheço o lema das conversas do grupo dele e do público que ele escolheu para vender apartamento. É só EU-MEU-MEU GRUPO-MINHA FAMÍLIA-NOSSOS INTERESSES. Você não percebe que essa conversa é um samba de uma nota só? aticei.
Ele abriu a boca para responder mas desistiu. Balbuciou um “não tenho tempo a perder” e nosso encontro acabou.
Pois é, as novas varandas, venceram. Na verdade, não acho as varandas tão nocivas, elas deixam entrar ar e convidam a alguma reflexão. Mas o problema com as novas varandas da pandemia é que são muito arrogantes, acham que agora janela é coisa de pobre, que elas estão aí para marcar o território da elite e o povinho que se lixe. Insuportáveis.
Eliana Haberli Silva é jornalista aposentada e cronista. Trabalhou em veículos como Folha de São Paulo e Jornal da Tarde.
Bela crônica, Eliana. Parabéns! Diz bem o que estamos assistindo assustados tb em Perdizes, Vila Mariana, Vila Madalena...