-CARLOS MARÉS-
O Direito Ambiental patina quando é visto e analisado apenas em sua concepção jurídica. É impossível entender, e julgar, matérias de direito ambiental se não se levar em conta a razão de ser de sua existência. Quando se entende o Direito Ambiental como mais um Ramo do Direito, mesmo que o trate como ramo especial, rico e preponderante sobre os demais, é difícil perceber o seu potencial transformador e consequentemente o temor e até ódio que inspira nas posições conservadoras e retrógradas da sociedade. É que quando se vê o Direito Ambiental com um conjunto normativo de princípios e regras, como outro ramo do direito, apenas mais nobre e generoso para com plantas e animais, não se percebe a profundidade do problema.
Em primeiro lugar, o termo ambiente, ou meio ambiente, esconde uma perversidade das sociedades modernas para com a natureza e seus seres tão vivos quanto os humanos. Na realidade trata-se da natureza, seja ela produzida por seu próprio movimento, seja modificada por uma forte intervenção humana. Mas é de natureza que se trata. E tratar de natureza quer dizer tratar dos seres humanos que dela fazem parte. O termo ‘ambiente’, natural ou artificial, é uma tentativa de manter o ser humano fora dele. É estranho. Um ambiente humano sem gente?
Mas, não nos deixemos cair na armadilha dos nomes. A filosofia moderna se perde nas discussões de categorias e vai se afastando da realidade, como Hegel se afastou da Guerra do Haiti. Não importa o nome que se dê a coisa, o que importa é a coisa. Chamemos de ambiental, então, mas tenha certeza de que de natureza se trata. E de gente, portanto, socioambiental.
O Direito Ambiental é o fruto, resultado, da questão ambiental, ou crise ambiental que abalou o mundo na segunda metade do século XX. A crise precisava ser normatizada para que fossem estabelecidos parâmetros de atuação humana para a proteção, manutenção ou cuidado para com a natureza, perdão, ambiente.
A crise não nasceu no século XX, tem sua gênese na formação da modernidade capitalista. Começa a ser óbvio para muitos pensadores que uma singela análise da formação moderna demonstra que a natureza foi excluída da sociedade humana, a natureza coisa, matéria prima, recurso, que precisa ser dominada, transformada e consumida como mercadoria. É isso que gera a acumulação de bens chamados de riqueza.
Mas a natureza não foi expulsa da sociedade humana sozinha. Tudo aquilo que se lhe aproximava teria que ser expulso também. Para finalmente expulsar a natureza de dentro do ser humano que seria pura razão. Por isso os povos da floresta, cujas sociedades são articuladas com a natureza, ainda quando considerados humanos pelos modernos, não devem se manter em comunidades naturais, em estado de natureza, dizia Hobbes. Esses humanos naturais teriam que sofrer de uma inferioridade congênita cuja salvação estaria no exercício do trabalho individual, como escravo por certo, já que não se dedicariam à nobreza do trabalho de forma voluntária.
Dessa forma a modernidade europeia criou o racismo e justificou eticamente a apropriação do trabalho dos outros continentes num processo colonial ardiloso e violento. Irremediavelmente os povos passaram a ser considerados naturezas e, como tal, invisíveis para o Direito. O Direito moderno cuidaria das relações das pessoas em sociedade, sociedade civil, diria Hobbes.
Mas há uma sutileza na exclusão da natureza que é tão perversa quanto as outras, mas muito mais sutil. A exclusão das mulheres. A modernidade exclui as mulheres e transformou a sociedade humana em sociedade dos homens. As mulheres tão próximas e parecidas com a natureza, procriam, e devem cuidar dos futuros homens, dos futuros integrantes da sociedade dos homens, guerreiros, pensadores, dirigentes. Isso aparece claramente na Declaração dos Direitos francesa, dos Homens e dos Cidadãos. As mulheres devem ser desastrosamente naturais, e se pensarem diferente, sempre haverá uma fogueira ou guilhotina para redimir.
Tendo em vista que a justificativa da separação entre homens e natureza se dá pela racionalidade e pelo afastamento de ímpetos naturais, sentimentais, o preconceito contra as mulheres se torna anátema porque as mulheres provocam nos homens os seus mais inferiores apetites naturais, diziam os franceses do século XVIII. As mulheres são animais de cabelos longos e ideias curtas, diria Schopenhauer. A natureza, as sociedades comunitárias e as mulheres foram, assim, afastadas, expulsas ou proibidas na sociedade dos homens, individuais, racionais, proprietários, circunspectos e bigodudos.
Ocorre que para dissabor da modernidade desses homens nem a natureza, nem os povos, nem as mulheres se conformaram com esta artificial separação. No final século XX a resistência dos povos, em especial na América Latina, ganhou contorno de movimento social interno e anticapitalista, os povos entenderam que era luta de todos contra o modo de produção devastador de seus territórios e cultura. No mesmo período a natureza deu mostras de exaustão e a seu modo demonstrou o descontentamento com a destruição. A humanidade sentiu essa reação, mas os direitos individuais de propriedade continuam fingindo que a conversa da natureza não pode atrapalhar o negócio dos homens. No século XXI amadureceu um antigo movimento de mulher que ganhou contornos precisos como os direitos coletivos.
O Direito, então, como ordenador da sociedade está sendo chamado a reintroduzir estes expulsos à comunhão social. Então nasceu o Direito Ambiental para reintroduzir a natureza. Mas visto isoladamente como proteção de espaços, licenças para interferir na natureza, sanções, criação de mercadorias verdes apenas ratificam e intensificam a exclusão e a crise continua, mais forte ainda. É que o homem tem que voltar a ser natureza e para isso será necessário reconhecer nos outros, nas outras e nas coisas, bichos, plantas, mulheres e comunidades fraternas, seres iguais e diferentes por natureza.
Então, o Direito que se chama ambiental, não é um ramo do direito que compete, estanque, com os demais; modifica, interfere, limita os demais. Isto quer dizer que a vida dos seres que compõem a biodiversidade é tão importante quanto a vida humana. Não é possível que os seres humanos transfiram as iniquidades, injustiças e maldades internas à sua sociedade moderna às sociedades não modernas nem as espécies não humanas.
É por isso que no momento brasileiro que vivemos há tanto ódio contra as singelas normas ambientais, contra os animais, as plantas, às mulheres, aos que não se pareçam com machos de vasta pelagem peitoral e aos que sonham e insistem em fazer um mundo melhor.
Curitiba, maio de 2019.
Carlos Frederico Marés de Souza Filho (PR) - Professor de Direito Socioambiental PUC-PR
Sua reflexão unindo mulheres, bichos e plantas é magnífica. Às partes da natureza sobre as quais recai a maior parte do peso de perseverar pela sobrevivência da humanidade, o desprezo. Às mineradoras que enriquecem uns raros e matam muitos, a deferência. Obrigada pelo belíssimo texto.