- Ibraim Rocha -
O 2O de novembro celebra a consciência negra e a necessidade da constante luta pela liberdade e igualdade, dia da morte de Zumbi dos Palmares, reaviva esse direito como resultado da luta, e que ainda tem muito por se construir. Mesmo quem tenta justificar o uso da força para legitimar determinado poder político, não pode ignorar o espírito de liberdade que habita nos seres humanos, que certamente os empurra a enfrentar a desigualdade.
Numa sociedade com maior tradição, organização e distribuição de bens sociais, com menos desigualdade, ainda que passando por situações históricas que põe em cheque o modelo, talvez seja mais fácil ou menos difícil construir essa relação com os princípios políticos dominantes na comunidade que colocam em debate a desigualdade, pois mais fácil reconhecer os princípios políticos da comunidade como um todo. Entretanto, isso não torna o resultado mais factível historicamente, talvez seja justamente o contrário o que torna o desafio permanente, como pode se verificar no intenso debate na sociedade estadunidense.
No mesmo sentido, e pelo contrário, quando se tem eleito um Presidente como Jair Bolsonaro de que vai acabar com o “coitadismo” do negro, quando questionado sobre se o combate ao preconceito poderia ser uma política de governo, reforça a necessidade do debate como instrumento de denunciar as desigualdades estruturais de uma sociedade como a brasileira, onde crescente uma ideologia que tenta mistificar a desigualdade entre brancos e negros, como apenas resultado de falta de oportunidades económicas, ou vitimismo. Pesquisa específica realizada em seis regiões metropolitanas do país, indicam que a desigualdade racial está presente nos mais variados indicadores associados ao desempenho de brancos e negros no mercado de trabalho, marcante na locomotiva do país.
Na Região Metropolitana de São Paulo, a maior cidade brasileira, a taxa de desemprego entre os homens negros é de 20,9%, enquanto esta taxa é de 13,8% entre os brancos (INSPIR/DIEESE/ AFL-CIO, 1999). Os negros ganham em média R$2,94 por dia, enquanto os brancos recebem R$5,50 (INSPIR/DIEESE/AFL-CIO,1999). Apenas 1,9% dos negros ocupados em São Paulo são empregadores, em comparação aos 7,2% de brancos nesta posição, enquanto mais da metade das mulheres negras (56,3%) estão ocupadas como domésticas ou mensalistas (INSPIR/ DIEESE/AFL-CIO, 1999). Enquanto 32,8% dos brancos ocupados na Região Metropolitana de São Paulo possuem grau de escolaridade até o 1º grau incompleto (ensino fundamental), cerca de 54% dos negros estão nesta posição. Na Região Metropolitana de São Paulo, apenas 5,3% dos negros ocupados recebem mais de 10 salários mínimos.
Nesse contexto, é necessário apontar como as escolhas políticas da comunidade podem agravar esse quadro, pois podem enfraquecer juridicamente determinados princípios que possibilitam criar válvulas para alterar o seu espectro de desigualdade. Ainda que sem discutir profundamente os princípios de filosofia política que dominam a sociedade brasileira nem como os princípios jurídicos se abraçam com determinados princípios de uma filosofia política, é preciso não admitir retrocessos em marcos legislativos, que favorecerem a comunidade negra, como política de cotas nas universidades, em concursos públicos, e principalmente o Estatuto da Igualdade Racial.
O Direito tem um importante papel na contribuição à Justiça distributiva, concretamente assentada, possível de ser construída, quando promove leis que procuram recriar os ambientes para abrir novas oportunidades em ambientes de desigualdade estrutural. Mas estas normas não surgem do nada, mas precisam a todo tempo ser renovadas no debate político.
Nessa linha, quando Aristóteles, na obra A Política, apesar de reconhecer a escravidão como algo natural, e por corolário, os escravos são colocados fora do governo que é reservado somente aos cidadãos livres, o essencial é entender o fundo do argumento sobre quem pode conduzir a política, que tem por objetivo construir a felicidade dos cidadãos, derivada do grau de igualdade que os homens livres elegem como o mais adequado, pois “a sociedade é uma reunião de seres semelhantes que tem por fim a vida mais perfeita possível”(A Política, VII, Cap. VII, § 2°, 35).
O objetivo não é extrair a verdade ou falsidade dos argumentos aristotélicos, cuja interpretação desse princípio maior permite deduzir quando as formas de governo degeneram negando a realização do objetivo da Política, mas não se pode negar que Aristóteles, segundo o seu método de observação da realidade, discute a organização do Estado com o fim de construir a igualdade possível à sua época, exatamente o papel colhido ao Direito, que uma visão histórica permite avaliar criticamente o grau de realização da igualdade em determinada sociedade.
A utilização do conceito de governo democrático, segundo Aristóteles, é baseado no conceito de cidadão, que nada mais é “aquele que pode ser juiz e magistrado”(A Política, III, Cap. I, § 4°, 20), o lugar onde impera a igualdade de acesso de todos ao poder, pois “seria ridículo negar autoridade exatamente àqueles que têm nas mãos o poder soberano”(A Política, III, Cap. I, § 5°, 30), donde a democracia é onde melhor se realiza o conceito de cidadão, porque destinada a eliminar toda barreira de acesso ao poder e, obviamente, de desigualdade, e que “resulta claramente que o cidadão não é o mesmo em todas as formas de governo, e que, por isso, é na democracia, principalmente, que ele se adapta à nossa definição” (A Política, III, Cap I, § 6°, 1275b, 5)
O fato de na democracia o poder soberano estar na mãos dos pobres, segundo Aristóteles, é um alerta que seu desafio permanente é ampliar o espectro dos que podem ser considerados semelhantes, sem alterar o princípio democrático, em que a maioria governa, promovendo maior igualdade na distribuição das riquezas porque, estando o poder nas mãos da maioria, se forem iguais, melhor se realiza a democracia.
O repensar a democracia, continua sendo essencial, justamente porque os pobres ainda são a maioria, logo, fonte permanente de desigualdade, mas o fundamental é perceber como o pensamento aristotélico pode ajudar a ciência do direito a construir princípios que ajudem a resolver os problemas de desigualdade, e, daí ser essencial manter os marcos legislativos construídos, que enfrentam a desigualdade estrutural e, que vislumbra-se estão em risco na nova conjuntura política que emergiu das urnas, deve-se reafirmar aqueles marcos legais estão em acordo com uma concepção democrática que aperfeiçoa a sociedade política.
Ora, se mesmo Aristóteles, que reconhece a escravidão como algo natural, não exclui ao servo a sua dignidade de ser humano, apenas discute os níveis de virtude necessários a cada grupo, afirmando que “Exigir virtude em um e não exigir em outro seria absurdo” (A Política, I, Cap. IV, § 10), tanto mais relevante é para uma concepção de democracia, em que a escravidão é inaceitável, a construção histórica da igualdade como desafio irrenunciável, em que a ideia de dignidade humana é a alavanca que não permite legitimar nenhuma diferença decorrente da capacidade de poder político, econômico, etnia, condição social se perpetue, porque os seres humanos são iguais em virtude.
Não se trata de discutir o acerto da concepção aristotélica, mas de reafirmar que a utilização de critérios de justiça distributiva, é essencial e não se pode despregar as decisões de argumentos políticos que sob a falácias de igualdade da comunidade política, nivelam todos sem considerar os diversos interesses e desigualdades históricas que se revelam na sociedade, e que só assim ser permite formar uma cidade virtuosa.
Consciência negra presente, na luta por seus direitos. Viva Zumbi.
Ibraim Rocha, doutor em Direito pela UFPA, é Procurador do Estado do Pará
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