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Haiti e a filosofia ou vergonha da escravidão

Atualizado: 2 de dez. de 2020

- Carlos Marés -

Tenho estudando a participação dos escravos africanos na formação da América Latina. Produziram boa parte de tudo quanto formou o enriquecimento da Europa e a acumulação de riqueza, forçados. Por isso mesmo lutaram pela liberdade e reconstruíram comunidades, povos e movimentos sociais, enfrentando o colonialismo escravista que foi a base da ocupação territorial do continente e continuam influenciando nossa vida social, sempre omitidos, negados e traídos.

Depois de ler os clássicos, Gates Jr., Cyril James e os brasileiros Jacob Gorender e Clóvis Moura e uma infinidade de outros, me deparei com um pequeno ensaio da filósofa, professora emérita da Cornell University, Susan Buck-Morss com o curioso título Hegel e Haiti.

A revolução negra do Haiti, Saint Dominique, no final do século XVIII e início do XIX é um dos episódios mais interessantes e mais esquecidos da História das Américas. Um escravo, Toussaint L’Overture, entendeu o significado da revolução francesa e passou a organizar os outros escravos em torno da liberdade, igualdade e fraternidade, portanto contra a escravidão, acabou formando um exército de gente livre, negra, que venceu todas as batalhas e derrotou os poderosos exércitos francês, espanhol e inglês, sendo finalmente traído por Napoleão e morto na França. O Haiti se tornou o primeiro país independente, com constituição, e sem escravidão, da América Latina. O único cuja guerra de independência foi diretamente a luta contra a escravidão e o sequestro de africanos. Neste sentido L’Overture é o que mais merece o título de Libertador ao lado, é claro, de Bolívar, San Martín, Artigas, Hidalgo, Morelos, Francia, Miranda, Tiradentes e outros.

A partir desta história, mas não exatamente sobre ela, a erudita Susan Buck-Morss tece uma crítica singela e profunda a Hegel e, por similaridade, a toda filosofia moderna.

O que tem a ver com Hegel a heroica revolução dos escravos do Haiti? Tudo, diz a autora. Hegel desenvolveu muito claramente a sua teoria da dialética na obra Fenomenologia do Espírito e criou a célebre relação contraditória amo/escravo, saudada ou criticada por toda filosofia posterior como uma das mais brilhantes metáforas da filosofia moderna, mas nenhum e ninguém, nem ele mesmo, se refere a existência da insubordinação escrava no Haiti iniciada em 1791, nem o constrangimento imposto à França revolucionária que ora declarava o fim da escravidão como corolário à liberdade inscrita em sua bandeira, ora enviava tropas para manter a ordem escravista e a produção nas colônias, Haiti ou Saint Dominique, especialmente. A metáfora sempre é interpretada como a negação das restrições à liberdade dos cidadãos, mas não contra a escravidão de africanos e indígenas direta e realmente exercida nas Américas enquanto a metáfora era escrita.

Saberia Hegel da existência da encarniçada guerra travada nas Antilhas e liderada por um escravo genial contra todos os amos europeus? Teria sido coincidência que ao mesmo tempo em que Hegel criava uma teoria dialética com a metáfora do amo versus escravo, Toussaint L’Overture, ex-escravo, ex-anafalbeto, ex-faxineiro transformado em general de homens livres, fantástico estratega e pensador político enfrentava as potências e os amos, ensinando a França como aplicar a igualdade, liberdade e fraternidade? É esse o tema do cuidadoso estudo da Professora da Cornell. Coincidência ou omissão?

O ensaio demonstra que Hegel não só conhecia como acompanhava de perto e com interesse as sangrentas ações contra os escravos rebeldes do Haiti. Na época isso era noticiado na Europa e Hegel mantinha estreitas relações com jornalistas e jornais especializados na guerra dos escravos. Hegel sabia! Ao gosto da modernidade, Buck-Moss prova com fontes citadas e fidedignas que Hegel sabia. Os analistas de Hegel, discípulos ou críticos, Marx inclusive, buscaram as origens da metáfora na genial percepção de Hegel na história da filosofia ocidental tradicional, desde a Grécia, mas ninguém conseguiu encontrar a fonte de seu pensamento na revolução antilhana. É impressionante como a realidade das rebeliões negras pode ser ignorada pela inteligência e filosofias modernas, conclui a Professora.

Mas se aplicarmos o método de Susan Buck-Morss para analisar outros importantes filósofos da modernidade, e suas metáforas, vamos chegar a resultados muito parecidos. Sempre há uma realidade ignorada por trás da teoria criada. As impressionantes Guerras Camponesas alemãs do século XVI em parte dirigidas pelo discípulo e divergente de Lutero, Thomas Muntzer, não teriam sido a base real das teorias de Locke sobre o governo civil e o contrato social e de Hobbes sobre o direito divino dos reis? E por que não se referem a elas? Thomas Morus não teria lido e estudado os cronistas e visitantes das Américas para escrever a Utopia? E porque não nos disse? Na modernidade parece aviltante para a filosofia e ciência dialogar com a realidade, com a natureza. Não pode deixar parecer que a natureza, escravos, indígenas ou camponeses estejam ensinando aos sábios. Mas ensinam, como reflete Susan Buck-Moss em sua profunda lição.

No Brasil não tem sido diferente, a maior parte dos historiadores e sociólogos que analisaram nosso passado colonial e imperial não tratam da escravidão nem dos escravos e ainda menos dos índios na construção contraditória da sociedade. Clóvis Moura e Jacob Gorender denunciam esta ignominiosa omissão, mas Buck-Morss a revela em letras garrafais porque trata não de uma vergonha nacional, mas da vergonha da modernidade e de sua infame escravidão.

 

Carlos Marés, professor de Direito da PUC-PR, é escritor e diretor do IBAP. Esta crônica foi escrita originalmente para a Revista da APEP (Associação dos Procuradores do Estado do Paraná) em 2016 revista e ampliada para a PUB.



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