- Júlia Silveira Bueno de Almeida Pontes -
O presidente eleito Jair Bolsonaro representa a falência da palavra, do discurso, da coerência e da democracia. O futuro governante do Brasil demonstra, por meio de suas falas, ter pouco respeito pelas situações para as quais a sua palavra é solicitada, como nas deliberadas ausências nos debates, durante a campanha para o segundo turno das eleições presidenciais, e no seu desdém ao falar a jornalistas que lhe solicitam esclarecimentos, os quais são também esperados pela população.
Em novembro de 2018, foi realizada uma roda de conversa na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) para debater questões relacionadas ao discurso do presidente eleito no que se refere a sua falta de apreço pela sociedade democrática, com ênfase em questões ambientais. Este evento foi em memória da professora e renomada linguista Ingedore Grunfeld Villaça Koch, e um importante conceito relacionado ao discurso desenvolvido por ela foi o da coerência. Partindo desse conceito, a professora Elizabeth Harkot de la Taille mostrou como a nova ordem do discurso representada por Bolsonaro é desprovida de coerência, pois ele não respeita as circunstâncias, e a adequação ao contexto é fator importante para a construção de sentido, ele não conhece limites e tampouco se preocupa com a diferença entre o que é verdade e o que é falso, seu discurso não encontra respaldo em fatos e, muitas vezes, distorce a realidade para a construção de uma verdade própria, na qual apenas ele e seus seguidores acreditam. A blindagem feita a ele pelas fake news é exemplo de que a única palavra que conta é a dele, e a única verdade que interessa é a construída por e para ele.
A coerência de um texto é construída pelo leitor a partir de seus conhecimentos linguísticos, enciclopédicos e interacionais; ela se dá na interação com o autor e com o próprio texto, o sentido não está dado a priori e Jair Bolsonaro falha ao anular justamente a possibilidade de interação, condição para a construção de qualquer sentido. Essa recusa da palavra é, também, uma recusa da democracia, fundamentada no confronto de ideias divergentes e de posicionamentos variados, assentada na possibilidade da discordância e da oposição e, mais uma vez, o presidente eleito é a negação dessas condições, ele fala apenas a quem concorda com ele e ataca quem dele discorde, mais um exemplo de sua incoerência, visto que foi eleito democraticamente.
As frases de efeito e as respostas simplistas que dá aos complexos problemas da sociedade brasileira configuram uma leviandade; seu pensamento generalizador, acompanhado de sua petulância e arrogância, é reflexo de uma preguiça mental, danosa à sociedade, cujos problemas demandam cada vez mais debates, reflexões e posicionamentos precisos, política e linguisticamente, sua fala desarticulada tem por trás um pensamento igualmente desarticulado.
Sua pretensão de aproximar-se do povo utilizando um linguajar popular, muitas vezes vulgar, é símbolo de sua estreiteza de horizontes; é na agressividade verbal que ele procura impor a superioridade que acredita ter em relação à população.
Em artigo de 1978, intitulado “Os palavrões”, o escritor italiano Italo Calvino fala sobre as circunstâncias em que o uso do palavrão tem o seu valor expressivo, e um dos valores atribuídos ao uso dessa linguagem é o da “situação do discurso no mapa social”, e neste caso o escritor toma como exemplo o discurso político. Para ele, o uso da linguagem obscena no discurso público indica um apagar das fronteiras entre a linguagem pública e aquela privada, é a não aceitação da hierarquia social da linguagem e o resultado decorrente dessa dissolução de fronteiras, antes de ser positivo na sua intenção de aproximação, representa, nas palavras de Calvino, “uma adaptação à perda de compostura geral, e não um aprofundamento e um desvelamento da verdade”, e, ainda conforme o autor italiano, “É somente na palavra que indica um esforço de reconsiderar as coisas, desconfiando das expressões correntes, que podemos reconhecer o começo de um processo libertatório”.
Jair Bolsonaro é a perda da compostura, é a recusa do argumento e da coerência, é a ausência de ponderação, de reflexão e de reconsideração; ele representa, no limite, a falência múltipla de um “processo libertatório” que precisa continuar o seu curso, política, social e linguisticamente.
Júlia Silveira Bueno de Almeida Pontes, Bacharel em Letras, é Mestranda na área de Literatura Italiana pela USP.
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