- Ibraim Rocha -
O Governo Bolsonaro a cada dia revela mais a sua face autocrática na condução da gestão governamental. Pretende impor a sua visão de mundo aos movimentos sociais como se estes fossem a razão do caos, especialmente no meio rural cujo o aparato estadual se volta contra os movimentos populares. A entrevista dada pelo secretário especial de Assuntos Fundiários, Luiz Antonio Nabhan Garcia, foi um verdadeiro roteiro do terror que se avizinha para os movimentos sociais do campo.
O Secretário, sem a menor cerimônia, contesta a legitimidade de uma decisão histórica do STF, no caso Raposa Serra do Sol, cujo acordão possui nada menos que 653 páginas de debates entre os ministros. Apesar disto, afirma que “O que puder ser revertido na forma da lei, talvez a gente possa reverter. Não podemos permitir que um Estado fique quase 90% à mercê de políticas ideológicas. Há interferência ideológica no Executivo, no Legislativo e no Judiciário. Decisão judicial se respeita, mas, no meu entendimento, houve equívoco do Supremo Tribunal Federal na questão da Raposa Serra do Sol.”
Quando se abre uma frente tão ampla contra os poderes constituídos, obviamente, não se poderia esperar um diálogo com movimentos sociais, que são definidos a priori como fonte de terrorismo.
Assim, dentro desta lógica, não é de estanhar que o Ouvidor Agrário Nacional, coronel do Exército João Miguel Souza Aguiar Maia de Sousa, em memorando enviado a superintendências regionais do Incra, recomendou que os órgãos não recebam "entidades que não possuam personalidade jurídica” além de "invasores de terras". O que confirma o discurso do Presidente Bolsonaro, que durante campanha arguiu que era necessário classificar as ações o MST, que não tem personalidade jurídica, como terrorismo.
A Presidência da República vai assim dando contornos da ação de como vai agir na sua tirania. Constrói um discurso, para legitimar um ideal aparentemente hobbesiano. Hobbes, no início da Parte II, da obra O Leviatã, intitulada “Do Estado”, apresenta o Leviatã como poder absoluto sobre os súditos, cuja “essência do Estado consiste nisso e pode assim ser definida: uma pessoa instituída, pelos atos de uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, como autora, de modo a poder usar a força e os meios de todos, da maneira que achar conveniente, para assegurar a paz e defesa comum”.
Acontece, porém, que Hobbes, não começa a sua obra, por destacar o Poder central, como a fonte do bem estar social. Antes de chegar à conclusão de que, apesar do contrato social, é Leviatã a única forma de superar o estado natural de barbárie que caracterizaria o homem, Hobbes parte da caracterização da natureza do homem para justificar, em momento posterior, a legitimidade do Poder do Soberano do Leviatã.
Assim, a Parte I d'O Leviatã é intitulado “Do Homem”. Antecedendo aquele conceito, Thomas Hobbes faz um estudo epistemológico das sensações, sentimentos, linguagem humana (Capítulo I a IX do Livro I), nde reconhece certos direitos inalienáveis, como a defesa da própria vida. Por isso, destaca “Se um grupamento significativo de homens resistir injustamente ao poder soberano ou cometer algum crime capital, pelos quais tais homens possam ser condenados à morte, terão eles a liberdade de se unirem, se ajudarem e se defenderem mutuamente? Certamente que sim, pois se limitam a defender suas vidas, o que tanto o culpado como o inocente podem fazer”.
Portanto, antes de tentar legitimar os seus atos de força, e quebrar p diálogo com os movimentos sociais, por um banimento unilateral, impondo a sua visão da história, o Leviatã tupiniquim deveria seguir algumas regras básicas do nosso contrato social que parece ignorar e que estão definidas no texto magno.
Com efeito, a Constituição Federal garante o direito de plena liberdade associativa, na forma do art. 5º, incs. XVII e XVIII. Este direito independe de autorização e o dispositivo constitucional veda a interferência estatal em seu funcionamento. Assim, é direito do cidadão associar-se ou não, para lutar por seus direitos. Nenhuma norma inferior pode desprezar o âmbito de aplicação do preceito constitucional.
O Governo que prega um discurso de pretensa legalidade divorciada do comando constitucional é antes de tudo um Leviatã sem autoridade e legitimidade.
Apesar de se dedicar ao estudo de como se deve organizar o Estado e como legitimar a sua força, mesmo a doutrina jusnaturalista clássica sempre enfatizou que o contrato social, como origem do Estado, nunca implica renúncia à liberdade, ou ao direito à vida, à propriedade etc. Os direitos naturais derivam dos princípios fundamentais racionais aos quais aderem os seres humanos, individualmente, ao aceitarem o pacto de constituição da sociedade civil.
Acordemos para o texto constitucional, antes que o tirano deixe de usar apenas o discurso da força e coloque a força para legitimar o discurso.
Ibraim Rocha é Doutor em Direito (UFPA) e Procurador do Estado do Pará.
Obrigado pelo registro Elizabeth.
Eis que inventam uma versão para os fatos, atacam-na ferozmente como se fosse "do inimigo" e, ao mesmo tempo, burlam a lei para fazerem o que querem. Parabéns pela clareza, Ibraim Rocha.