-GUILHERME PURVIŅŠ-
Savigny, nos primeiros anos do Século XIX, opôs-se ao Jusnaturalismo, afirmando a unidade histórico-filosófica da Ciência do Direito. Usava ele o termo “filosófico” como sinônimo de “sistemático”, como pertinentemente pontua Karl Larenz em sua “Metodologia da Ciência do Direito”.
O chamado direito positivo – Constituição, leis, normas jurídicas vigentes – é expressão de momentos históricos. No entanto, a sua aplicação tende a persistir no tempo. Assim, pode-se dizer da existência de duas expressões históricas do Direito: o direito positivado, estático enquanto expressão verbal; e o direito aplicado, dinâmico enquanto interpretação da expressão estática. Ambos, porém, são resultantes de momentos políticos específicos.
Quando, em 5 de outubro de 1988, entrou em vigor a Constituição Democrática, o Brasil inaugurou uma nova república, rompendo definitivamente seu vínculo com o odioso regime de exceção, então consubstanciado juridicamente na Constituição outorgada de 1967, com expressivas alterações trazidas pela Emenda Constitucional n. 1/1969.
Desde o dia em que foi autorizada a abertura de processo que resultou no impeachment de Dilma Roussef, a Constituição de 1988 passou a ser deixada de lado. Mas, naquele momento, apontava-se a utilização de um expediente contábil irregular destinado a honrar obrigações de natureza assistencial. Purismo exacerbado? Que fosse! Inaugurava-se uma nova era, de estrita observância da lei.
Os fatos políticos que sucederam, tendo como epicentro as decisões tomadas por um juiz federal de Curitiba, contudo, extrapolaram os limites da interpretação jurídica das leis. Passou a prevalecer a convicção pessoal de uma só pessoa, amparada por forte esquema midiático. Tudo com o beneplácito das instâncias superiores, que não ousaram desagradar a opinião pública que aos poucos começava a ser forjada.
Decisões legal e constitucionalmente incorretas ocorrem com certa frequência, mas são normalmente corrigidas em instâncias superiores. No caso vertente, as decisões eram muito mais do que simplesmente incorretas. Eram teratológicas. Fugiam completamente dos parâmetros estabelecidos pelo direito escrito. Opunham-se diretamente com o que a lei estabelecia. Não eram mais inéditas interpretações da lei para fazer face a um novo momento histórico. Não. Eram decisões antijurídicas. Eram tudo menos Direito.
Um doente com o mal de Tourette, durante um ataque de coprolalia, jamais estará rezando uma missa, ainda que vista batina e suba ao altar. Ou, ao menos, esse episódio não será referendado pelo Vaticano.
Mas, dirão, eram decisões prolatadas pelo Poder Judiciário. Contavam com a participação do Ministério Público e da Polícia Federal. Outras, pelo Poder Legislativo, com as bênçãos do Supremo Tribunal Federal.
A pompa e a presença de nomes representando instituições, porém, só impressionam o leigo. Se um doente, sofrendo o mal de Tourette, vestir uma batina durante um ataque de coprolalia e subir ao altar da Catedral da Sé, ninguém dirá que está rezando uma missa. Ou, ao menos, esta interpretação não receberá o beneplácito da arquidiocese ou do Vaticano, sob pena de aniquilação dos próprios fundamentos da religião. Se receber, podemos ter a certeza de que, ou as autoridades eclesiásticas também enlouqueceram ou estão sob a mira de fuzis de algum fanático religioso que professe outra fé.
Mas, aqui, não estamos falando de pessoas com deficiência mental, que merecem nosso respeito enquanto grupo vulnerável e juridicamente inimputável. O que temos é uma representação teatral que, embora repleta de improvisos e cacos, vem sendo muito bem dirigida. Ou melhor, uma pseudo-representação teatral, já que não podemos rebaixar a arte da Dramaturgia ao nível da farsa política.
Ocorre que compreender que estamos diante de uma fantasia talvez exija um conhecimento mínimo de Teoria do Direito. Não se exige muito. Não é necessário ler Savigny, Jhering, Duguit, Kelsen ou Alexy. Bastaria um velho Carlos Maximiliano e um vade-mecum forense. No entanto, é preciso entender um pouquinho, bem pouquinho, de Direito, para saber o que é Direito Constitucional, o que é Direito Processual Penal, o que são Direitos Humanos. Caso contrário, com a ausência da autoridade do argumento, adota-se o argumento da autoridade. Ou da "otoridade".
O argumento a favor dos princípios da justiça deve necessariamente partir de algum consenso (cf. John Raws, “Uma teoria da justiça”). Quando a divergência é abissal, não há a possibilidade de adoção desse consenso e passa a reinar o caos. Assim como erros médicos, erros judiciários ocorrem e também podem ser fatais. Inconcebível, porém, é imaginar que um erro médico evidente seja convalidado por uma junta médica, mesmo quando toda a comunidade científica esteja alertando para as consequências desse erro. É o que ocorre no momento político atual.
Vereadora de oposição assassinada. Ex-presidente preso. Manifestações públicas ora reprimidas, ora apoiadas pela polícia, de acordo com o gosto político. Direito Ambiental, do Trabalho, da Previdência Social, do Consumidor, todos eles aviltados. Políticas de inclusão desmanteladas. Invasões de universidades. A este estado de coisas dá-se o nome de exceção. Uma vez contaminado o ambiente jurídico pelo flagrante desrespeito da ordem constitucional, nada mais resta a fazer. Abre-se a caixa de Pandora e o Direito torna-se objeto de chacota. Os ratos tomam conta do convés e passa a valer a força física. Não por outro motivo um governo ilegítimo que se queira perpetuar espertamente haverá de se cercar de armas por todo o lado. Não há caminho de volta se todas as instituições e os mais poderosos meios de comunicação estão em conluio para convencer a turba da relatividade das coisas.
Estupro coletivo? Tudo depende do ângulo adotado: para a gangue de estupradores, apenas uma relação sexual consentida com a Constituição de 1988. Resta saber se é possível algum consenso diante de tamanho divórcio civilizacional. Afinal, quarenta milhões de moscas varejeiras estão vendo tudo e deliciam-se diante da imundície fétida. Quarenta milhões de moscas não podem estar erradas e aplaudem o seu Senhor. Falar em sistema jurídico, no contexto da farsa e da tirania, passa a ser considerado coisa de comunistas como Savigny, falecido em 1861... Coisa de "corruptos", que não aceitam com gratidão esse banquete fecal que nos é oferecido.
GUILHERME PURVIŅŠ, formado em Letras e Direito, é escritor.
Texto fiel à realidade. Denuncia o momento atual da inversão das regras jurídicas e de afronta à Constituição e que tortura a mente dos que respeitam o Direito.
Infelizmente, o apoio a esses atos por milhões de pessoas, com justificativas baseadas em informações "fake news", e brandindo a bandeira unificadora do "combate à corrupção", está fazendo as vezes de "opinião popular".
O artigo é uma fotografia desta triste situação. Parabéns ao fotógrafo !
Parabéns pelo texto!
Uns dias atrás vi um filme, Cold Pursuit, no qual um personagem mafioso pergunta aí filho de 10 anos se ele já havia lido o livro que ele mandara, O Senhor das Moscas. Aí sim, ele poderia opinar nos “negócios”. Excelente reflexão, acho até que te inspiraste em mim, mas o teu nível é mais alto!
Muito bom teu artigo, parabéns!
Texto brilhante! Conciso, certeiro, necessário. Parabéns, Guilherme!