- Ibraim Rocha -
Não se pode negar, segundo a tradição brasileira, a função dos Tribunais em dizer o direito, portanto, definir o contorno dos direitos fundamentais, sem que tal afete a função dos Poderes Executivo e Legislativo, até porque esses Poderes são independentes e harmônicos, conforme postulado no art. 2º da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB).
Interessante observar, no caso brasileiro, que o Tribunal Constitucional possui competência reconhecida no art. 102, caput, da CRFB, precipuamente como o Guardião da Constituição, exatamente a expressão utilizada por Kelsen em sua conhecida obra Quem deve ser o Guardião da Constituição, em que destaca a função do Tribunal Constitucional como Legislador Negativo[1]. Entretanto, nem por isso se aceita apenas essa função, pelo contrário, cada vez mais se reafirma a corrente interpretativa de função democrática para representar a soberania popular expressa na Constituição. Por isso, Alexander Hamilton após demonstrar que a função de interpretação das leis é o domínio próprio e particular dos tribunais, apresenta a justificativa democrática desse fato, aduzindo que isto não supõe de modo algum uma superioridade do poder judiciário sobre o legislativo, mas apenas que o poder do povo é superior a ambos, que está expressa na constituição, devendo os juízes ser governados pela Lei Fundamental e não por aquelas leis[2].
O processo de julgamento conforme a Constituição é um mecanismo de expressão da democracia, logo, esta é uma das tarefas fundamentais para construir uma sociedade realmente democrática, a ser exercida por um Poder desarmado, que deve se orientar tão somente pela razão, e nada mais; A função pública dos julgamentos do STF possibilita aos cidadãos ter uma fonte facilitadora da sua compreensão sobre a Constituição. A publicidade das decisões jurisdicionais do STF, prevista no art. 93, inciso IX, da CRFB, tem a função extra de permitir a compreensão à comunidade do que a Constituição significa, exposta na sua fundamentação, servindo de guia para as suas ações sociais, segundo um princípio de igualdade de tratamento para todos.
O reconhecimento expresso que compete ao STF, a guarda da Constituição lhe impõe o poder e o dever de fixar a interpretação e formar a razão de decidir para os temas que envolvam matéria constitucional, vinculativa para os demais órgãos do Poder Judiciário, e elemento essencial para orientação dos demais poderes para atuar democraticamente. E isto exige um absoluto respeito a Suprema Corte no exercício do seu munus, e, ao mesmo tempo, exige o dever de exercer esse munus com absoluta imparcialidade e independência, pois quando assim não age, ela se enfraquece na sua autoridade moral, e, a democracia sofre um abalo num dos seus pilares de sustentação.
A análise judicial posta ao magistrado é uma etapa na construção do valor Justiça, em que os raciocínios de ordem filosófica e jurídica nada mais são do que instrumentos a guiar esse dever, e que no Tribunal Constitucional se manifesta pela conjugação dos votos independentes dos seus membros, que expressando os pontos de vista divergentes da comunidade, obtém com a maioria um patamar de legitimidade para que a comunidade seja persuadida que o dever ético fundamental previsto na Constituição está sendo cumprido.
Neste contexto, o episódio recente em que o ministro Ricardo Lewandowski, dentro de um avião foi provocado por um passageiro, quando iria participar do julgamento do pedido de liberdade do ex-presidente Lula, sob as palavras de que “O STF é uma vergonha”, e, cuja a mesma frase, posteriormente foi projetada por luzes de laser na fachada do STF, longe de serem atos isolados, revelam uma ação concertada para minar a autoridade do STF, a partir de uma visão politizada do caso Lula, com origem na extrema direita que saiu fortalecida com a vitória de Bolsonaro. E, infelizmente, isso é possível, pois, o STF, sob a Presidência de Carmen Lucia, postergou o julgamento do mérito das ADC´s que tratam da possibilidade de prisão após condenação em segunda instância, com flagrantes sinais de pressão politica. E que Lewandovsky tem sido uma voz corajosa em destacar a necessidade deste julgamento, inclusive, despachou ao atual presidente do STF, ministro Dias Toffoli pautar os julgamentos, para que os 11 ministros da Corte, possam definir o tema.
Nunca é demais citar o pensamento de Platão sobre os juízes: “A razão de afirmarmos que a virtude é requisito indispensável dos juízes é que, além de sabedoria, precisarão dispor de coragem. O verdadeiro juiz não deve basear sua opinião no que aprendeu no teatro, quando se achava intimidado pelo vozerio das multidões e por sua própria ignorância, como também não deve, se for realmente competente, por covardia e timidez emitir sentença injusta com a mesma boca com que invocara os deuses, quando se preparava para julgar.[3] O STF infelizmente tem dado sinais que tem sucumbido e se acovardado frente a uma multidão raivosa. Quando a Corte Suprema se acovarda para exercer a sua função, não é ela que se enfraquece, é a democracia que perece, pois se quebra um elo importante na corrente do processo democrático que permite firmar consensos sobre as escolhas éticas da comunidade pelo diálogo, construindo a moralidade pública que torna possível o convívio harmônico, apesar das divergências.
Cabe ao STF demonstrar que não é uma vergonha, cumprindo o papel de Guardião da Constituição, pautando sem medo os temas constitucionais, e dando vida aos direitos fundamentais presentes no texto constitucional, antes que a democracia fique acuada por um soldado e um cabo.
Referências:
[1]KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 256.
[2]“Nor does this conclusion by any means suppose a superiority of the judicial to the legislative power. It only supposes that the power of the people is superior to both; and that where the will of the legislature, declared in its statutes, stands in opposition to that of the people, declared in the Constitution, the judges ought to be governed by the latter rather than the former. They ought to regulate their decisions by the fundamental laws, rather than by those which are not fundamenta.” HAMILTON, Alexander. Federalist 78. The Judiciary Department. Independent Journal. Saturday, June 14, 1788. Disponível em:<http://www.constitution.org/fed/federa78.htm>. Acesso em: 5 dez. 2018.
[3]PLATÃO. Leis. Tradução Carlos Alberto Nunes. Belém: Edufpa, 1980. v. XII - XIII. p. 59. (Diálogos).
Ibraim Rocha, Doutor em Direito (UFPA), é Procurador do Estado/PA.
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