O talentoso Wickfield
- Guilherme José Purvin de Figueiredo
- há 2 dias
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Atualizado: há 1 dia
- Guilherme Purvin -

A construção do nome Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield, adotado como identidade por um juiz brasileiro, revela-se um projeto de autoficção de rara sofisticação. A seleção dos nomes compõe uma colagem intertextual com fortes referências à literatura britânica e à tradição vitoriana.
Senão, vejamos:
Edward: nome comum entre reis ingleses, notável por sua associação com a monarquia e a nobreza. Na literatura, “Edward” é recorrente em Shakespeare (como o Rei Eduardo IV em Ricardo III).
Albert: referência direta ao Príncipe Albert, consorte da Rainha Vitória. Evoca respeitabilidade, ordem e tradição.
Lancelot: cavaleiro da Távola Redonda, símbolo de coragem e contradição moral. Remete à nobreza medieval e ao idealismo romântico.
Dodd: sobrenome presente em obras de Dickens e outros autores britânicos, associado a figuras da pequena burguesia ou ao funcionalismo respeitável. Pode sugerir, com ironia sutil, o burocrata discreto.
Canterbury: alusão aos Contos de Canterbury, de Geoffrey Chaucer, marco da literatura inglesa medieval, além de sede do arcebispado da Igreja Anglicana. Representa peregrinação, julgamento moral e tradição.
Caterham: topônimo real de Surrey, e também nome de um personagem reacionário em The Food of the Gods (1904), de H.G. Wells — um político que combate o avanço da ciência. Evoca uma crítica velada ao conservadorismo.
Wickfield: sobrenome de personagem em David Copperfield, de Charles Dickens — um advogado íntegro, mas vulnerável. Sutil autorreferência ao universo jurídico e à ambivalência da ética pública.
Essa identidade não é uma fraude documental, mas uma construção literária, uma autoficção erudita e irônica. O autor desse nome não se ocultou sob um pseudônimo qualquer: transformou-se em personagem de um romance britânico inexistente, digno de figurar entre Chaucer, Dickens e Wilde.
Nesse contexto, cabe perguntar se o foro adequado é realmente o judicial — ou a Academia Brasileira de Letras. Talvez a Royal Society of Literature. Em vez de sanção, seria mais justo outorgar-lhe uma cátedra honoris causa em “literatura performativa aplicada no meio forense”.
O autor desse feito — formado pela Faculdade de Direito da USP, a mesma de Castro Alves e Fagundes Varela — encarnou com convicção sua persona ficcional. Não posso acreditar que a minha faculdade não tenha entendido a brincadeira: entendeu sim, e topou participar da peça, respeitando a nossa tradição no campo da Literatura, da Política e das Peruadas. Quem risse primeiro, perderia o jogo. E, a esta altura, com diploma na mão, Dodd já não podia voltar atrás. Seria trair os ideais da Velha e Sempre Jovem Academia. Trabalhou como servidor do Ministério Público e, por fim, ingressou na magistratura onde, salvo prova em contrário, desempenhou seu ofício com denodo.
Mas, afinal, houve crime? Por ter criado um duplo? Alguém em juízo condenaria Diadorim, por falsidade ideológica? Ou Cyrano de Bergerac, cuja duplicidade era antes gesto de coragem estética, existencial e amorosa? E o que dizer desse tal de Fernando Pessoa, a.k.a. Alberto Caeiro, a.k.a. Álvaro de Campos, a.k.a. Ricardo Reis, a.k.a. Bernardo Soares?!
Como observa Paulo Bezerra, em sua análise da duplicidade em Dostoiévski:
“O surgimento dos duplos resulta do processo de interação dialógica entre as personagens, um processo que não é ditado apenas por uma questão de forma de articulação das vozes que povoam o discurso literário, mas, principalmente, pelo tipo de relações sociais desiguais dominantes [...] numa sociedade na qual ‘uma aristocracia com fortes traços de primitivismo se funde a uma burguesia emergente e primária, para dirigir a coisa pública com um burocratismo bolorento, que lembra uma caverna impermeável à entrada de ar e luz’.” (O laboratório do gênio, in O Duplo, de Dostoiévski. São Paulo: Editora 34, 2013, p. 239).
Os formalistas gritarão: “não existia nenhum juiz com esse nome, logo, não é possível validá-lo”. Pois bem: onde estão as partes prejudicadas por suas sentenças? Ao que tudo indica, o único incômodo real foi o de termos sido feitos de bobos. O nome era uma brincadeira literária, e seu autor — talvez percebendo que ninguém teve bagagem cultural para compreendê-la — preferiu assumir a personagem a magoar nossa mediocridade coletiva.
Se houve dolo, foi o de criar um avatar mais britânico que os britânicos, mais literário que os romancistas, mais vitoriano que Victoria. Não estamos diante de um falsário, mas de um grande artista. Em vez de persegui-lo judicialmente, num país que recompensa corruptos com aposentadorias generosas, proponho: indiquem-no para a ABL. Ou, ao menos, reservem-lhe uma lápide fictícia em Westminster Abbey.
No campo da dramaturgia, Stanislávski, em sua obra "La formation de l'acteur", ensina que o intérprete não deve representar o personagem de forma artificial, mas o encarnar com verdade interior, mergulhando emocionalmente em sua psicologia e história pessoal. Foi o que Sir Dodd fez. Para que casos como esse não se repitam, que se exija dos examinadores em concursos públicos um conhecimento mínimo de literatura, de ironia — e de humorismo.
Guilherme Purvin, pós-doutorando junto ao Depto. de Geografia da FFLCH-USP, Coordenador Internacional do IBAP e da APRODAB, é ficcionista. No dia 26 de abril, sábado, a partir das 16h30, estará lançando seu novo livro de contos, "Onde começa o hemisfério" (Ed. Terra Redonda) no bar Canto Madalena (Vila Madalena - São Paulo/SP).