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Tatarrey

Atualizado: 5 de dez. de 2023

- Carlos Marés -


Carlos Marés

Pedro Pachaguaya Yurja, antropólogo e pesquisador boliviano, apresentou na “II Reunión Plenária del GT CLACSO ‘Derecho, Clases Sociales y Reconfiguración del Capital’” ocorrida na PUCPR, em Curitiba, entre os dias 22 e 26 de outubro um tema especialmente interessante para refletir sobre as relações do Estado com os povos tradicionais e os movimentos sociais, intitulado “El Tabú de Tatarrey. Autoridad, ecología y género em comunidades del sur de Oruro”.

Tatarrey é uma autoridade tradicional representada por um ramo de flores entregue a pessoa que passa a ter a obrigação de decidir sobre complexos casos que envolvem uma ou mais comunidades e famílias, em geral em questões de uso da terra. O escolhido é sempre um homem, mas não qualquer um. O Tatarrey escolhido tem que ter uma história na comunidade e já ter resolvido casos menores ou já ter sido Tatarrey antes. Portanto, não é escolhido o mais ativo, nem o mais piedoso, nem o mais guerreiro, nem o mais devotado ou sábio. O escolhido tem que ter uma história ou, como relata Pedro Pachaguaya, um caminho na vida que o leva naturalmente a ser o Tatarrey. O caminho se chama Thakhi e é uma espécie de curriculum. Mas o Thakhi não é uma folha corrida de bons antecedentes e serviços voluntária e benevolentemente prestados à comunidade. Um dos principais castigos por crimes e mal feitos cometidos na comunidade é prestar serviços. Então, na maior parte das vezes o futuro Tatarrey começa sua caminhada de prestador de serviços como apenado. Muitas vezes no Thakhi estão mais de uma condenação. Portanto, a folha de bons serviços pode não compreender serviços voluntários, mas compelidos por falhas, desvios de conduta, crimes praticados.

Ser escolhido Tatarrey e receber o ramo de flores é um encargo, não uma deferência. O poder de decidir, de julgar, não é uma honraria, mas uma determinação, quase uma pena, por que a decisão nem sempre poderá agradar a todos e sua autoridade emana diretamente de sua experiência como servidor e da aceitação dos envolvidos.

O Tatarrey terá que encontrar a solução, a mais harmônica possível, a partir de sua experiência não de chefe, mas de apenado. Mas não está sujeito somente à sua experiência, a vontade da comunidade deve ser observada e, portanto, tem que voltar à tradição e saber como foram julgados casos similares. Quem mantém essa memória são as mulheres. As mulheres são as guardadoras dos livros de atas, nos quais estão registradas as decisões de todos Tatarrey anteriores. Portanto, a escolha é pela história individual, mas a decisão é pela história coletiva.

Esta singela história do Tatarrey, Thakhi e as mulheres guardiãs da memória descortina um universo jurídico muito mais profundo, desde o papel da pena numa sociedade justa, até a função de conservação do sistema exercido pelas mulheres. Isso e muito, muito mais, bastando dar asas à imaginação.

O Estado Plurinacional da Bolívia, fundado pela Constituição de 2009, resolveu adotar o Tatarrey como autoridade judicial comunitária, mantendo o ramo de flores como símbolo. Mas ser nomeado Tatarrey passou a ser honorífico, não no sentido de gratuito, mas de superioridade, de reconhecimento de méritos, de poder estatal. Daí, critica acertadamente Pachaguaya, não precisa mais do Thakhi, nem da memória das mulheres e, portanto, não precisa do passado. O poder passa a ser exercido pelo Estado, não pelo povo.

O Tatarrey nas mãos do Estado passa a ser uma casca sem conteúdo, que se parece com o original no colorido das flores, mas é palavra vazia que serve muito mais à opressão do que à justiça.

Dezembro de 2018

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