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Trump e a geopolítica do corner

Atualizado: há 26 minutos

-BERNARDO LINS-


Tenho uma confissão a fazer: adoro Big Mac. Meu paladar me trai. É o sanduíche perfeito, melhor do que baguette francesa e quase equiparável à incrível medialuna de grasa que ilumina minhas idas a Buenos Aires. E toda vez, ao me sentar na lanchonete e olhar aquele ambiente tão artificial, com um vago cheiro de gordura frita, não canso de me espantar com o Ronald McDonald: como se parece com Trump! Com a inegável vantagem de que, graças à sua inerente sabedoria de ícone publicitário, não fala.


Quando um presidente fala, deve cuidar de medir as palavras. E, no dia 8 de janeiro de 2025, em uma entrevista coletiva, Trump falou demais, e duramente, ressuscitando uma retórica de prepotência que andava escondida. Esbravejou contra o Canadá, o México, o Panamá, a Groenlândia, a União Europeia, até contra nós, repetindo argumentos que já vinha ensaiando. E o conjunto revelou uma costura política preocupante. Nem precisava e, podemos conjecturar, parte do que disse talvez seja mera encenação.


Só que não é assim. Apesar da postura desrespeitosa, de um imperialismo cheirando a naftalina, há racionalidade no recado de Trump, à luz dos seus interesses. Ele colocou alguns temas que serão centrais nos primeiros meses de seu governo. Sua argumentação faz apelo aos anseios conservadores: criação de empregos locais, combate às drogas, reafirmação da superioridade WASP. Mas o alvo é outro.


Ao esbravejar contra Canadá e México, ele se coloca diante do seu eleitorado do rust belt como o campeão da reindustrialização americana em moldes tradicionais. Apresenta-se como alguém disposto a fritar o NAFTA e seu sucedâneo, o USMCA, ironicamente celebrado no seu primeiro mandato, para garantir mais empregos. Trump, continua a usar o desemprego no setor automotivo como reforço para seu discurso. O USMCA garantiu o uso de autopeças fabricadas nos EUA para a montagem de veículos nos outros países, mas a balança do setor ainda é desfavorável aos americanos, gerando empregos canadenses e mexicanos. O futuro presidente quer mais para si.


Um tema inesperadamente correlato é a presença russa no Ártico. Para os EUA, a região é frágil em termos estratégicos, pois os russos possuem 24 mil quilômetros de costa no Mar Ártico, cobrindo 45% do arco polar. São três dezenas de portos comerciais ou militares voltados para o norte. Em comparação, os EUA possuem apenas uma base militar na Groenlândia e dependem dos países nórdicos para sua projeção de poder. A presença militar e de transportes deixa os russos em vantagem. Ironicamente, o aquecimento global melhora essa posição, ao alterar a navegabilidade na região. Por trás da retórica trumpista emerge uma estratégia de domínio de rotas de comércio cuja maior beneficiária, ficando tudo como está, não será a própria Rússia, mas a China. A rota do Ártico é um caminho curto para os mercados da costa leste americana.


A mesma lógica justifica o interesse em administrar o fluxo de mercadorias e uma eventual assimetria de direitos de passagem no canal do Panamá. Trata-se de negociar, dia após dia, o fluxo de insumos e produtos vindos de outros países e destinados aos EUA.


O que de fato existe, no fim do túnel desses tempos conflituosos, não é uma luz, mas um manto que irá recobrir todos os jogadores da política e do mercado nas próximas décadas. Seu nome é China. O avanço tecnológico, os ciclos de produção, o modo de vida e a cultura do amanhã já estão sendo consolidados por lá, hoje. Os chineses renovaram tudo (só o Big Mac, em sua perfeição, não pode ser alterado, espero eu). Enquanto nos debatemos com nossos dilemas herdados do passado, os chineses tomaram o trem do futuro. Estão ganhando distância e, por inércia, o mundo cairá em seu colo. Os EUA, em sua ambição de economia maior, estão no corner.


Aparentemente, Trump está tentando chamar os chineses para o centro do ringue, ir para o clinch, esticar o confronto e ganhar uns pontos. Espalha ameaças para negociar em várias frentes o acesso ao seu mercado interno: no controle do trânsito de cargas pelo Panamá, no fluxo de transporte no Ártico, nas regras aduaneiras, na proteção do dólar como moeda de referência, na obrigação de presença local das empresas para operar no mercado americano, na ameaça da força militar para dar lastro a iniciativas comerciais agressivas.


Há, como pano de fundo, uma reafirmação da liderança de Trump e a tentativa de atender à agenda de campanha. Mas o verdadeiro jogo se dará por décadas, modelando corações e mentes em escala global para legitimar ações de enfrentamento comercial, político e, talvez, bélico. Confrontam-se valores morais, culturais e de doutrina, mas, na prática, a ideologia se realiza decidindo para onde e para quem vai o dinheiro. Vemos, no ensaio trumpista, a geopolítica última que a extrema direita encena mundo afora, apenas para alguns ganharem, para outros perderem e para nos fazer sofrer. Lembremos de James Carville: é a economia, estúpido.

 

Bernardo Lins é doutor em economia pela UnB e consultor legislativo aposentado da Câmara dos Deputados e associado do IBAP.



  

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