- Ricardo Antônio Lucas Camargo -
Era uma vez uma sociedade fortemente hierarquizada em que os seres humanos se dividiam em três grandes grupos: os tutores, os tutelados e os inimigos.
Os tutores também se denominavam “guerreiros da Divindade”, e todas as suas ações eram tidas como insuscetíveis de crítica e julgamento, porque tinham o evidente direito de existir por si mesmos: eram executores de uma missão divina e, portanto, tudo o que fizessem estaria, por si mesmo, abençoado. A única transgressão que se lhes poderia atribuir seria a traição ao seu status e, com isto, poderiam passar a integrar ou a categoria dos tutelados ou a dos inimigos. Os tutores tinham de ser obedecidos com toda a exatidão e agradá-los não era mais do que obrigação dos tutelados. Qualquer elogio feito a estes era motivo de júbilo, pela incomensurável honra, embora esta honra não fosse suficiente para os promover à condição de tutores. Os tutores chegaram a esta condição por escolha dos tutelados, e tal escolha se deu porque falavam a estes que iriam fazer com que o Bem sempre vencesse o Mal e com que a tranquilidade retornasse, e que sabiam o caminho para a nação se tornar grande.
Os tutelados eram aqueles cuja existência era considerada uma concessão dos tutores, e cuja ação, por isto mesmo, estava sujeita a ser julgada boa ou má, de acordo com o que agradasse os que generosamente lhes permitiam existir. Tornaram-se tutelados porque, quando eram livres, viviam inseguros, achavam estar cercados por uma violência e desonestidade para as quais não viam punição exemplar e achavam que os seus governantes eram incompetentes para atenderem às necessidades que os açulavam. Quem não conseguisse agradar os tutores, ou seria punido com alguma simples restrição, ou, conforme o grau do desagrado provocado, poderia ser rebaixado à condição de inimigo. Uma das maiores honras para um tutelado era desenvolver habilidades para destruir fisicamente os inimigos e obter os elogios dos tutores. Entretanto, a melhor situação para um tutelado não era nem mesmo esta: era a de, consciente de que sua existência era uma concessão dos tutores, estes não precisassem, sequer, saber que ele existia.
Os inimigos eram assim enquadrados a partir do que fossem, do que cressem ou deixassem de crer, e se consideravam fora da humanidade, tendo como única função ser exterminados pelos guerreiros da Divindade para mostrarem como Esta era poderosa. Qualquer conduta ilícita que se lhes atribuísse era um pretexto para punição. O conceito de conduta ilícita, por outro lado, variaria conforme a pessoa que a praticasse: era a forma que se encontrava para evitar que a lei pudesse beneficiar o inimigo ou prejudicar os “guerreiros de Deus”. Se a lei não pudesse ser interpretada de modo que o inimigo não se beneficiasse, os juízes – que podiam estar ou na categoria dos tutores ou na categoria dos tutelados – deveriam afastá-la e consultar a respectiva consciência para saber como o são sentimento de justiça das pessoas honestas exigia que o caso fosse decidido. “Acabou essa bobagem de julgar conduta: tem que julgar a pessoa. É pessoa de bem, merece existir e não deve receber reprovação por nada, é do resto, tem que pedir permissão. Não quer pedir permissão, punição”. Até mesmo o simples fato de ministrar alimento aos inimigos quando sentissem fome poderia ser considerado um ilícito por parte dos tutelados. Entretanto, quanto mais se provocasse o sofrimento do inimigo, mais os tutelados se sentiam seguros e mais os tutores se sentiam reforçados em sua autoridade.
Nenhuma dessas condições era passível de herança: o indivíduo poderia integrar qualquer uma dessas categorias a partir de um juízo realizado pelos tutores, que diziam que o enquadramento decorreria da própria natureza das coisas, embora a hereditariedade fizesse, até prova em contrário, supor que os filhos de quem nascesse em uma dessas categorias pertenceria à categoria dos pais. Presumia-se que os filhos de tutores merecessem ser tratados como integrantes da categoria dos tutores, mas, se não mostrassem as virtudes inerentes a esta condição, poderiam ser rebaixados a tutelados ou inimigos. Assim também com os filhos de tutelados ou de inimigos.
Também para ocupar essas categorias não era necessário, biologicamente, ser homem ou mulher, jovem ou velho, e, socialmente, integrar as condições dos civis, militares ou clérigos: uma mulher civil podia estar entre os tutores, um clérigo poderia estar entre os tutelados, um militar podia estar entre os inimigos. A quem cabia a definição? Ao bom senso dos tutores, inspirado que era pela vontade divina.
O ensino tinha como finalidade o reforço dos dogmas fundamentais da hierarquia social e moral existente, e teria como parâmetro o que estivesse no Livro Sagrado. Este deveria ser interpretado literalmente ou não, conforme o resultado no sentido de reforço ou de abalo da hierarquia: se a interpretação literal levasse à conclusão de que o superior estaria equivocado diante do inferior, certamente o texto sagrado conteria, ali, alguma figura de linguagem. Tudo o que não levasse à conclusão de que “a ordem estabelecida era a expressão de tudo o que sempre fora e sempre seria, sob pena de frustração dos planos maiores de que os tutores eram os executores”, só poderia ser considerado sabotagem levada a cabo pelos inimigos.
Alguma decisão tomada pelos tutores não produzira o efeito desejado? Isto não poderia decorrer de um erro na decisão, mas sim de uma sabotagem, que poderia ter sido levada a cabo pelo inimigo mesmo que, aparentemente, ele não tivesse meios físicos de o fazer: afinal, não se pode subestimar a capacidade do Mal agir. Se malogro há, sacrifícios maiores terão de ser feitos por culpa do inimigo, e é este mais um motivo para ele ter de ser combatido sem quartel. E quem negar que todos os fracassos sejam culpa do inimigo está perto de se tornar cúmplice dele e de merecer, pois, o tratamento a ele destinado.
Como acaba? Caro leitor, pergunto eu se quer que acabe e de que modo acabe esta história. Como dizia a famosa canção de Earl Grant, ao fim da história, tudo que tinha a ser dito, já o foi...
Ricardo Antonio Lucas Camargo é Professor de Direito da UFRGS, Procurador do Estado/RS e ex-Presidente do IBAP.
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